Os Neters do antigo Egito são personificações da função em ação. Para nós, um friso ou mural egípcio pode parecer peculiarmente rígido e sem vida quando comparado, por exemplo, a um friso ou mural grego. Mas a arte grega aparentemente tem a intenção de ser uma experiência sensorial, como a nossa própria arte. A arte egípcia tem outras intenções. Em relação a ela, somos como um homem sem treinamento musical tentando entender uma partitura de Beethoven ou, pior, como estudantes que aprenderam a ler notas, mas nunca ouviram música de fato. Nossos julgamentos não passam de reflexos e projeções de crenças e desejos subjetivos.
Schwaller de Lubicz mostra que o simbolismo dos Neters envolveu tanto uma escolha cuidadosamente considerada quanto uma profundo compreensão (baseada em observação meticulosa e em considerações teóricas) da natureza do símbolo escolhido. Ele apoia essa afirmação com vários exemplos, um dos quais darei aqui.
À primeira vista, a serpente pode parecer um modelo perfeito de unidade. O que poderia expressar melhor a singeleza do que o comprimento indiferenciado da serpente?
No Egito, entretanto, a serpente era o símbolo da dualidade ou, mais precisamente, do poder que resulta na dualidade. E esse poder é ele próprio dual em seu aspecto; é simultaneamente criativo e destrutivo; criativo no sentido de que a multiplicidade é criada a partir da unidade, destrutivo no sentido de que a criação representa a ruptura da perfeição do Absoluto.
Quando se percebe que a serpente tem uma língua bifurcada e um pênis duplo, a sabedoria subjacente da escolha fica clara. Como símbolo da dualidade, a serpente representa o intelecto, a faculdade pela qual o homem discrimina, ou seja, pela qual dividimos o todo em suas partes constituintes.
Mas a dualidade sem controle é o caos. A análise desenfreada é apenas destruição. Simplesmente conhecer sem sintetizar é parodiar Deus — e é provavelmente por isso que, tomando emprestada a serpente do Egito, o livro de Gênesis a usa como símbolo da tentação.
A serpente, aparentemente uma unidade, é dual em sua expressão — tanto verbal quanto sexual, dual e divisiva por natureza.
Mas a dualidade e, nesse caso, o intelecto, não é apenas uma função humana, mas também cósmica. Há um intelecto superior e um inferior. Assim, simbolicamente, há a serpente que rasteja e o intelecto superior, que permite ao homem conhecer Deus — a serpente celestial, a serpente do céu. Os egípcios sabiam muito bem que as serpentes não voam. Mas há um significado profundo no fato de colocarem a serpente no ar em circunstâncias específicas. A serpente alada, comum a tantas civilizações, também era usada no Egito e desempenhava um papel simbólico semelhante.
O pensamento paralelo direciona a união da cobra e do abutre no diadema real usado pelo faraó, que representa a união do Alto e do Baixo Egito e, ao mesmo tempo, simboliza a união triunfal das faculdades de discernimento e assimilação, a marca do homem perfeito ou real. (Schwaller de Lubicz também demonstra a conexão entre a serpente e o olfato e mostra esse simbolismo permeando o santuário do Templo de Luxor, no qual o sentido olfativo é simbolizado. Isso, por sua vez, está relacionado ao hieróglifo para Neith, Neter de “tecelagem”, uma vez que a ação da urdidura e da trama é a maneira egípcia de simbolizar a “travessia” que é característica do processo mental).
Assim, a escolha do símbolo rico e poderoso da serpente para a dualidade divulga tanto uma compreensão total dos muitos aspectos da dualidade em seus sentidos criativo e destrutivo quanto uma compreensão igualmente completa da natureza do animal escolhido para representar a dualidade. Também é significativo o fato de que, embora em geral o Egito tenha dado a cada animal um único nome, a serpente, em seu papel de “separadora” (portanto, obstruidora) das obras de Rá, é vilipendiada sob uma série de nomes diferentes (talvez qualificando de alguma forma o tipo específico de obstrução ou negação). Esses nomes aparecem em inúmeros ritos e textos nos quais o falecido deve orar para ser libertado das formas proteicas que a negação assume. Set, o fogo separador, em termos cristãos, torna-se Satanás, famoso por sua astúcia; em outras palavras, Satanás aparece sob muitos disfarces e, no Egito, sob muitos nomes.