Pessoa: O bem e o mal

Fragmentos dos escritos do espólio de Fernando Pessoa, organizado por Pedro T. Mota, sobre o tema «ROSEA CRUZ».

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Conhece, disse ele, que, porque tudo que está em baixo é como o que está em cima, assim no oculto há uma politica, como a nossa politica terrestre e material; que há uma diplomacia transcendente. O ocultismo, que por símbolos e sombras, temos, não é a expressão de uma verdade, mas de uma opinião transcendente. O caminho verdadeiro da Verdade só se vê quando conhecemos o principio fundamental, de que devemos servir-nos para nos desvestir da ilusão primaria.

— E qual é esse principio fundamental?

— É este: NO ABSOLUTO NÃO HA NEM BEM NEM MAL. O Bem e o Mal são termos criados para simbolizar coisas que, em si, nem bem nem mal contêm. O ocultismo é uma politica da Vontade absoluta, em que figura como mal, porque oposto aos seus interesses transcendentes, tudo quanto é a Inteligência; mas a Inteligência só é um mal para quem a tem por inimiga.

Nos mitos antigos há traços da primeva dissidência. Do Anjo Rebelde se diz que é Lúcifer, o Portador da Luz. Porque razão se identifica a Luz com o Mal? Porque o que lhe chama Mal é a Treva. Ele ilumina e dissipa a Treva Originaria, o Caos primevo. A Luz é o mal porque está constantemente a destruir o Mundo, cuja substancia é a Treva.

O Deus que criou o Mundo não é o Ser. Há mais mundos do que aqueles que Deus criou. Há mais Deuses que Deus. Há mais Realidades que a Realidade natural ou sobrenatural.

O mal é de duas especies. Há o mal que é inimigo da substancia do Mundo: este é a Inteligência, que é o ver-o-mundo-de-fora, o principio de fuga do mundo para o Além-Infinito. E há o mal que é inimigo do mundo, e não da sua substancia, e este é o mal puro e simples — o mal do criminoso, e por vezes também do santo, o mal do que quer destruir os outros para existir, ou destruir-se para que os outros existam.

Acima de todos os deuses e de todos os mundos, impessoal, nem bom nem mau, Inteligência Pura, despida de todos os atributos, está o DESTINO. Cada mundo, cada universo, tem o seu Deus criador, e o seu Bem e Mal, que são a tendencia para regressar a Deus, e a tendencia para se afastar dele.

A revolta dos anjos não nasceu de quererem desobedecer ao omnipotente. Contra o Omnipotente não poderia haver revolta. Nasceu da tendencia para a Verdade, para verem, acima do Deus que os criara, alma do mundo a que pertencem, o DESTINO. Por isso ao anjo primeiro rebelde se deu o nome de Lúcifer — o Portador da Luz.

Acima da ânsia de fusão com os produtos de Deus, está, com efeito, a ânsia mística de fusão com Deus, que é a base do ocultismo (quase) todo. Mas acima desta mesma ânsia está a ânsia de fugir a Deus e ao Mundo — a ânsia de fusão com o Destino.

A revolta dos anjos não é a mesma que a desobediência de Adão. Os anjos quiseram fugir de Deus para o Destino, da Pura Vontade para a Inteligência Pura, da Pura Personalidade para o Puro Impessoal. Adão quis fugir de Deus para os produtos de Deus. A tentação a que ele sucumbiu, diz a Escritura que foi pela mulher, e sob o impulso da Serpente.

O Mundo foi criado pela Emoção, que é a logica da Vontade (o Logos do Mundo); por isso se descreve a Segunda Pessoa da Trindade como ao mesmo tempo Emoção e Logos. Adão e Eva são a Vontade e a Emoção separadas; o pecado foi em querer ser como Deus, unindo-as. Deu a inversão de forças, porque no nosso mundo humano, a Emoção precede a Vontade. A Emoção foi tentada pela Consciência (a Serpente). A Emoção sem Vontade, como Deus a quis, é a Virgem. O filho da Virgem, isto é, o produto da Emoção sem Vontade, é por isso o Filho de Deus.

Em tudo isto, onde está a Inteligência? A INTELIGÊNCIA NÃO É DESTE MUNDO, É ESTRANHA À SUBSTANCIA DO MUNDO: DERIVA DO DESTINO, SUPERIOR AOS HOMENS E A DEUS.

Fernando Pessoa (1888-1935)