Yourcenar: dignosticar

Excerto de YOURCENAR, Marguerite. A Obra em Negro. Tr. Antonio Ramos Rosa, Luísa Neto Jorge e Manuel João Gomes. Lisboa: Dom Quixote, 2002

Antonio Ramos Rosa et alii

— Vós sois médico—disse o capitão.

— Sou—disse Zenão.—Entre outras coisas.

— Sois médico—tornou o flamengo, obstinado.—Calculo que uma pessoa se deve cansar de coser os homens, assim como também de os descoser. Não estais cansado de vos levantar a meio da noite para cuidar desta pobre carcaça?

— Sutor, ne ultra…—retorquiu Zenão.—Auscultava os pulsos, examinava as línguas, estudava as urinas, e não as almas… Não ME cabe a mim decidir se o avarento atacado de cólicas merece mais dez anos de vida ou se seria bom que o tirano morresse. O pior, o mais estúpido dos nossos pacientes ensina-nos sempre algo e as suas sânies não são mais infectas do que as de um homem hábil ou as de um justo. Cada noite que passava à cabeceira de um fulano qualquer ME levava a confrontar-ME com perguntas ainda sem resposta: a dor e a sua finalidade, a benignidade da natureza ou a sua indiferença, o problema de saber se a alma sobrevive, ou não, ao naufrágio do corpo. As explicações analógicas que outrora ME tinham parecido elucidar os segredos do universo, pululavam agora, a meu ver, de novas hipóteses de erro, dada a sua tendência de atribuir à obscura Natureza o mesmo plano preestabelecido que outros atribuem a Deus. Não digo que duvidasse: duvidar é diferente; prosseguia a investigação até que cada noção se vergasse nas minhas mãos como uma mola forçada; sempre que ia trepando os degraus de uma hipótese, sentia quebrar-se, sob o meu peso, o indispensável SE… Paracelso e o seu sistema das assinaturas pareceu-ME ter aberto à nossa arte uma via triunfal, recorrendo, na prática, a superstições de aldeia. O estudo dos horóscopos deixou de ME parecer tão útil como dantes para a escolha dos remédios e a predição dos acidentes mortais; admito que sejamos feitos da mesma matéria dos astros; mas isso não implica que eles nos determinem ou nos derrubem. Quanto mais pensava nisso, mais as nossas ideias, os nossos ídolos, os nossos hábitos tidos como santos, e as nossas visões tidas como inefáveis ME pareciam engendradas, pura e simplesmente, pelos sobressaltos da máquina humana, exactamente como a ventosidade das narinas ou das partes baixas, o suor e a água salgada das lágrimas, o sangue branco do amor, os lodos e excrementos do corpo. Irritava-ME que o homem esbanjasse assim a sua própria substância em construções quase sempre nefastas; que falasse de castidade antes de ter desmontado o maquinismo do sexo, que disputasse acerca do livre arbítrio em vez de pesar as mil e uma obscuras razões que nos fazem pestanejar quando de repente nos aproximam uma vara dos olhos, ou acerca do Inferno antes de ter interrogado de mais perto a morte.

— Conheço a morte—atalhou o capitão, num bocejo. Entre o tiro de arcabuz que ME atirou abaixo em Cérisoles e a golada de aguardente que ME ressuscitou, há um hiato profundo. Se não fora o cantil do sargento, a estas horas ainda lá estaria.

— Concordo—redarguiu o alquimista—, se bem que haja muita coisa em abono da noção de imortalidade, e muito, também, em seu desabono. O que os mortos perdem, primeiro que tudo, é o movimento, depois o calor, e a seguir, com mais ou menos lentidão, segundo os agentes a que estão submetidos, a forma: será também o movimento e a forma da alma, mas não a sua substância, que são abolidos com a morte?… Encontrava-ME em Basileia, por alturas da peste negra…

original

– Vous êtes médecin, dit le capitaine.

– Oui, dit Zénon. Entre autres choses.

– Vous êtes médecin, reprit le Flamand têtu. Je m’imagine qu’on se lasse de recoudre les hommes comme on se lasse d’en découdre. N’êtes-vous pas fatigué de vous relever la nuit pour soigner cette pauvre engeance ?

– Sutor, ne ultra… repartit Zénon. Je tâtais des pouls, j’examinais des langues, j’étudiais des urines et non pas des âmes… Ce n’est pas à moi de décider si cet avare atteint de la colique mérite de durer dix ans de plus, et s’il est bon que ce tyran meure. Le pire ou le plus sot de nos patients nous instruisent encore, et leurs sanies ne sont pas plus infectes que celles d’un habile homme ou d’un juste. Chaque nuit passée au chevet d’un quidam malade ME replaçait en face de questions laissées sans réponse : la douleur et ses fins, la bénignité de la nature ou son indifférence, et si l’âme survit au naufrage du corps. Les explications analogiques qui m’avaient jadis paru élucider les secrets de l’univers ME semblaient pulluler à leur tour de nouvelles possibilités d’erreur en ce qu’elles tendent à prêter à cette obscure Nature ce plan préétabli que d’autres prêtent à Dieu. Je ne dis pas que je doutais : douter est différent ; je poursuivais l’investigation jusqu’au point où chaque notion ployait dans mes mains comme un ressort qu’on fausse ; dès que je grimpais à l’échelle d’une hypothèse, je sentais se casser sous mon poids l’indispensable SI… Paracelse et son système des signatures m’avaient paru ouvrir à notre art une voie triomphale ; ils ramenaient en pratique à des superstitions de village. L’étude des horoscopes ne ME semblait plus aussi profitable qu’autrefois pour le choix des remèdes et la prédiction des accidents mortels ; je veux bien que nous soyons de la même matière que les astres ; il ne s’ensuit pas qu’ils nous déterminent ou puissent nous incliner. Plus j’y pensais, plus nos idées, nos idoles, nos coutumes dites saintes, et celles de nos visions qui passent pour ineffables ME paraissaient engendrées sans plus par les agitations de la machine humaine, tout comme le vent des narines ou des parties basses, la sueur et l’eau salée des larmes, le sang blanc de l’amour, les boues et les excréments du corps. Je m’irritais que l’homme gaspillât ainsi sa substance propre à des constructions presque toujours néfastes, parlât de chasteté avant d’avoir démonté la machine du sexe, disputât de libre arbitre au lieu de peser les mille obscures raisons qui vous font ciller si j’approche brusquement un bâton de vos yeux, ou d’enfer avant d’avoir questionné de plus près la mort.

– Je connais la mort, dit en bâillant le capitaine. Entre le coup d’arquebuse qui ME jeta bas à Cérisoles et la rasade d’eau-de-vie qui ME ressuscita, il y a un trou noir. Sans la gourde du sergent, je serais encore dans ce trou-là.

– Je vous l’accorde, dit l’alchimiste, bien qu’il y ait fort à dire en faveur de la notion d’immortalité, comme aussi contre elle. Ce qui est retiré aux morts, c’est d’abord le mouvement, puis la chaleur, ensuite, plus ou moins promptement, selon les agents auxquels ils sont soumis, la forme : seraient-ce le mouvement et la forme de l’âme, eux aussi, mais non sa substance, qui s’abolissent dans la mort ?… J’étais à Bâle, à l’époque de la peste noire…