(Abellio1981)
Você não pode fazer história séria – o que chamo de história transcendental – sem estabelecer relações estreitas entre todos esses fatos, relativizando-os e fazendo-os ressaltar de uma causa comum. Nesse momento, uma operação intelectual completamente diferente se realiza, em relação às operações intelectuais habituais, sobre a noção de causalidade. Passa-se das causas eficientes, das causas lineares de causa e efeito, para as causas finais, ou seja, remonta-se do efeito para a causa. Sei bem que as causas finais não têm boa reputação, elas se prestam a todos os devaneios intelectuais. Spinoza dizia: “As causas finais são o asilo da ignorância.” Eu gostaria de reabilitar a concepção das causas finais – não que seja um método a ser aplicado sistematicamente: é preciso enquadrá-la, dar-lhe parapetos intelectuais. Mas sempre os esoteristas, aqueles preocupados com a Tradição, tentaram discernir na massa confusa dos eventos a orientação destes, e tentaram explicá-los pelo objetivo que esses eventos perseguiam.
Já Sêneca, nos tempos dos romanos, admirava-se da atitude dos sacerdotes etruscos. (Os sacerdotes etruscos eram os líderes de um povo anterior aos romanos na história de Roma.) Sêneca dizia: “Esses sacerdotes etruscos, é estranho, afirmam que não é porque as nuvens se encontram que o raio surge – é para que o raio surja que as nuvens se encontram.” Maravilhoso exemplo de causa final. Evidentemente, repito: tais concepções, tais explicações, que não explicam nada, ou que só explicam [191] a posteriori, que são profecias de chegada (ou profecias a posteriori, como dizia Montaigne), se prestam a todos os devaneios poéticos. Pode-se explicar tudo dessa maneira. Não é esse o método que proponho. Para tentar colocar ordem na história transcendental, o método que lhes proponho é um método operacional; é um método lógico, é uma nova lógica. Os americanos diriam “uma nova gnose” (a palavra está na moda na América agora, antes de se tornar no Ocidente).
O essencial para mim hoje é estabelecer os princípios, o discurso do método, que permitem tornar operacionais um certo número de regras intelectuais, de modo a servir de parapeto aos devaneios mais ou menos poéticos de todos os simbolismos que invadiram o esoterismo.
Quando Husserl fala desse ceticismo que dissolveu “os antigos ideais não esclarecidos” – é na verdade a referência explícita à Tradição – e, de forma subjacente, a Tradição está presente. O que são esses ideais? Digo-lhes desde já, não tendo aqui tempo para uma demonstração muito completa e que ME levaria de volta ao começo, ou seja, muito longe, que admito de forma implícita, como ele, as essências de uma Tradição primordial – e vocês encontrarão esse tema subjacente em toda a minha exposição.
Existe, segundo meu entendimento, uma Tradição primordial, que é a de um tempo comum a todas as religiões, a todas as filosofias, a todos os mitos, a todos os símbolos – cujo estudo vemos proliferar hoje. Essa Tradição primordial foi dada de uma só vez à humanidade, de forma velada. É evidente, ao consultarmos certos documentos essenciais, não tão únicos assim, que eles contêm símbolos que frequentemente apresentam dificuldades de interpretação e dão margem, mais uma vez, a devaneios da imaginação. Mas há ideogramas, e chamo a atenção para o fato capital da existência dos ideogramas, que não estão sujeitos a variações estruturais. Com eles, não se pode alterar o texto: o ideograma não tem texto, ele é como é dado, é recebido como está, e os séculos os transmitem sem variações possíveis. Há, por exemplo, o simbolismo da cruz – a cruz é um ideograma extremamente simples – e ali estamos sujeitos a um certo simbolismo que se presta a todos os desenvolvimentos e, consequentemente, a todas as controvérsias. E, finalmente, há dois ideogramas fundamentais na Tradição, que reencontraremos na nova gnose, dos quais eles constituem a pedra de toque; trarão a prova desvelada de que estamos na verdade. São a Árvore das Sephirot da Cabala e os hexagramas do Yi Jing dos antigos chineses, documento que talvez seja o mais antigo da humanidade (cinco ou seis mil anos de idade, senão mais, não se sabe): são documentos milenares. Ora, são imagens geométricas, com palavras, claro, mas o essencial é a articulação geométrica, e ali, por mais que haja glosas, por mais que se acumulem comentários sobre esses documentos desde o início da humanidade, os documentos permanecem o que são. São traços no papel, e esses traços não puderam ser alterados, é uma imagem geométrica. Foi, portanto, dado de uma só vez, mas de forma velada, na medida em que os homens que receberam essa revelação ou instrução – pois não se sabe sua origem; talvez seja uma revelação, a graça do Espírito Santo, ou uma instrução por parte de seres vindos de outro lugar, que os hindus chamam de grandes “rishis”; esse problema não tem importância, de qualquer forma tem que vir de algum lugar – se foram os grandes “rishis” que os trouxeram, extraterrestres quaisquer que desembarcaram um dia, há sete ou oito mil anos, nos deram isso e partiram, deixando filhos que se casaram, como diz a Bíblia, com “filhas dos homens” – pouco importa, eles também devem ter recebido de algum lugar essa revelação, se quiserem, de uma inteligência superior, de uma inteligência cósmica, de uma inteligência divina, não brinquemos com as palavras: não é um problema filosófico. Portanto, dizia eu, os homens que receberam essa revelação não dispunham nem dos elementos, nem dos operadores ou meios intelectuais ou conceituais capazes de colocar essas noções em frases claras. Por quê? Porque nessa época antiga da humanidade, quando a consciência não havia alcançado os graus de precisão, de capacidade de análise que alcançou hoje, os homens viviam em estado de participação universal do mundo, participação dita mística, se quiserem – essa palavra “participação” é realmente muito esclarecedora – eles estavam em estado, como diziam os antigos hindus, de clarividência: chamavam isso de “shruti”. Em outras palavras, numa espécie de estado de sinestesia – o mundo lhes falava ou, mais exatamente, eles sentiam o mundo. No Gênesis de Moisés, quando Moisés recebe a Lei no topo do Monte Sinai (o povo está reunido abaixo e observa a nuvem ardente no cume da montanha), a Bíblia diz textualmente: “O povo via os sons dos trovões e das trombetas”. “Via” – não “ouvia”, “via”.
O que prova bem que havia uma espécie de sinestesia, uma fusão de todos os sentidos: audição, visão, etc. Uma espécie de estado de indistinção, e vocês reencontram ali, aliás, o simbolismo do Gênesis de Moisés, quando se diz que, ao sair do Paraíso, desse estado de indistinção entre o homem e o mundo, “Adão e Eva receberam vestes de pele”. O que isso significa? Que foram constituídos como indivíduos separados, ao receberem um ego que não tinham. E toda a evolução – ou melhor, toda a involução – da humanidade, nesse período (que chamaremos de descendente, apenas de forma simbólica), em que o homem adquiriu uma individualidade, consistiu precisamente em fazê-lo ter uma razão raciocinante, uma razão “separada” – separá-lo do mundo, dando-lhe uma inteligência analítica, que permitia fazer distinções, recortes. O triunfo dessa razão separada é o início dos tempos modernos, é Descartes – Galileu, Descartes ou Newton. Mas desde que esse triunfo da dualidade entre o homem e o mundo, entre o espírito e a matéria – que constitui a base do cartesianismo –, desde que essa separação triunfou, trazendo os resultados que conhecemos (ou seja, o enorme triunfo das ciências modernas e, ao mesmo tempo, a crise atual – pois, no fundo, a crise é o corpo, a consequência imediata do triunfo), sabemos que é preciso sair dessa razão separada e entrar em períodos de reintegração.
Em outras palavras, sentimos hoje que estamos prestes a passar da situação dos antigos reflexos de participação para o estado de poder consciente e de dominar intelectualmente as condutas do mundo. Vamos atravessar o combate da involução (que é um período de crise, e estamos no meio dele), mas estamos atravessando, pelo menos temos sinais que permitem pensar que estamos atravessando – e sentimos que vamos poder adquirir novos poderes, nos quais a razão deixará de ser uma razão separada, um simples instrumento lógico-dedutivo, e se tornará o que Husserl chama de “razão transcendental”, aquela que nos colocará em estado de comunhão com o mundo. Nesse momento, espírito e matéria não serão mais do que um.
É o problema da transfiguração, é o problema da comunhão, que caracteriza a ascensão do homem de volta aos antigos poderes. Perdemos poderes que os animais ainda têm: seus poderes de orientação, seus poderes de premonição… É evidente, ou pelo menos é certo para mim, que os antigos os tinham. Por que os perderam? Porque a razão os obliterou, a razão separada os obliterou – e é o fenômeno conhecido em biologia como neotenia. Se parecemos atrasados nesse aspecto em relação aos antigos, aos animais, é apenas para alcançar uma ascensão mais elevada. É certo, por exemplo, que o feto ou o filhote de macaco parece avançado, em seus poderes físicos, em relação ao feto ou ao bebê humano – mas esse atraso, chamado neotênico, é na verdade a garantia de uma ascensão maior. Partimos daí para ir mais longe; só que levamos mais tempo. Aceitamos esse atraso e somos recompensados por ele com uma ascensão superior.
Em matéria de ciência transcendental, as palavras “atraso” e “avanço” pouco significam. Veremos isso mais tarde. Assim, muitos sinais nos mostram que hoje estamos deixando o domínio da razão separada, da razão analítica, para uma reintegração no sentido da razão transcendental. Tentarei enumerar, mais adiante, esse conjunto de sinais. Mas isso está indubitavelmente acompanhado de um desvelamento dos textos sagrados. De um desvelamento da Tradição. E estamos no meio disso, trata-se de saber como, ao longo de nossa história de vinte e cinco séculos, essa Tradição se manteve de forma subterrânea. Não é desinteressante ver a genealogia do Ocidente sob esse ângulo, da emergência progressiva da história sagrada, da história secreta. E gostaria de dizer, na primeira parte, o que foi, de fato, sob esse ponto de vista, a genealogia do Ocidente. Mas peço que mantenham em mente esta distinção que faço entre mística e conhecimento, entre mística e gnose: a mística é a fé, a gnose é o conhecimento. Essa distinção é clássica, mas é cada vez mais importante tê-la presente hoje, quando somos invadidos por um monte de técnicas – que têm seu valor, aliás, tudo é positivo, não há para mim negativo puro no mundo, repito –, portanto, dizia eu, somos invadidos por um monte de técnicas de amortecimento da racionalidade ocidental. Ora, em relação à racionalidade, temos, nós ocidentais, o dever de não criar complexos de inferioridade. Ao buscar hoje todas essas técnicas orientais de amortecimento da inteligência ou da razão, querem nos colocar, nós ocidentais, numa espécie de complexo de inferioridade ou de culpa em nome de nossos triunfos históricos em termos de poder. Devemos recusar veementemente nos deixar arrastar para esse processo! Pois, na verdade, também temos nossas técnicas a apresentar: são técnicas de gnose, não são técnicas de mística; ainda é preciso, evidentemente, ser capaz de demonstrar que possuímos essas técnicas e mostrar seu valor. E, precisamente, o tema de minha exposição é a busca dessas técnicas, a busca desses modos operatórios que hoje se impõem a nós, ocidentais conscientes e organizados, que somos ou devemos ser.