52. Trata-se de descrever o homem tal qual teria sido no estado de simples natureza, como o pintam os Filósofos. Como a nossa vida sobrenatural se vem enxertar sobre a vida natural e a conserva, se bem que a aperfeiçoa, importa lembrar resumidamente o que sobre esta nos ensina a recta razão.
1.° O homem é um composto misterioso de corpo e alma, de matéria e espírito que se unem intimamente nele, para formarem uma única natureza e pessoa. É pois, digamo-lo assim, o ponto de junção, o traço de união entre os espíritos e os corpos, uma síntese das maravilhas da criação, um pequeno mundo que resume todos os mundos — microcosmos — , e manifesta a sabedoria divina que soube unir dois seres tão dissemelhantes.
53. É um mundo cheio de vida: segundo nota S. Gregório Magno, distinguem-se neles três vidas, a vegetativa, a animal e a intelectual. «Homo habet vivere cum plantis, sentire cum animantibus, intelligere cum angelis». Como a planta, o homem alimenta-se, cresce e reproduz-se; como o animal, conhece os objectos sensíveis, tende para eles pelo apetite sensitivo com suas emoções e paixões, e move-se com movimento espontâneo; como o anjo, se bem que em grau inferior e de modo diverso, conhece intelectualmente o ser supra-sensível, a verdade, e com a vontade inclina-se livremente para o bem racional.
54. 2.° Estas três vidas não se sobrepõem, mas compenetram-se, coordenam-se e subordinam-se, para concorrerem para o mesmo fim, que é a perfeição do ser completo. É lei, a um tempo, racional e biológica que, em todo o ser composto, a vida não se pode conservar e desenvolver senão coordenando, e, por conseguinte, subordinando os seus diversos elementos ao elemento principal, sujeitando-os, para deles se servir. Tra-tando-se, pois, do homem, as faculdades inferiores, vegetativas e sensitivas, devem ser submetidas à razão e à vontade. Esta condição é absoluta: na proporção em que ela falta, enfraquece pu desaparece a vida; e, de feito, quando cessa a subordinação, começa a dissociação dos elementos; é o enfraquecimento do sistema, e por fim a morte.
55. 3.° A vida é, pois, uma luta: porquanto as nossas faculdades inferiores lançam-se com ardor para o prazer, enquanto as faculdades superiores tendem para o bem honesto. Ora, entre esses dois bens há muitas vezes conflito: o que nos agrada, o que nos é ou ao menos nos parece útil, nem sempre é moralmente bom. É necessário, pois, que a razão, para fazer reinar a ordem, combata as tendências contrárias e triunfe: é a luta do espírito contra a carne, da vontade contra a paixão. Esta luta é por vezes molesta: assim como na primavera a seiva sobe pelas árvores, assim há por vezes na parte sensitiva da nossa alma impulsos violentos para o prazer sensível.
56. Não são, porém, irresistíveis: a vontade, ajudada pela inteligência, exerce sobre esses movimentos das paixões um quádruplo poder: 1) poder de previdência, que consiste em prever e prevenir, por meio de prudente e constante vigilância, muitas impressões e emoções perigosas; 2) poder de inibição ou de moderação, pelo qual travamos ou pelo menos moderamos os movimentos violentos que se elevam em nossa alma; assim, por exemplo, posso impedir os meus olhos de se deterem num objeto perigoso, a imaginação de conservar imagens lúbricas; se em mim se levanta um movimento de cólera, posso-o refrear; 3) poder de estimulação, que excita ou intensifica pela vontade movimentos passionais; 4) poder de direcção, que nos permite dirigir esses movimentos para o bem, e por isso mesmo afastá-los do mal.
57. Além destas lutas intestinas, pode haver outras entre a alma e o seu Criador. Pela recta razão vemos, sem dúvida, que nos devemos submeter plenamente Àquele que é nosso soberano Senhor. Mas esta obediência custa-nos; há em nós uma espécie de sede de independência e autonomia que nos inclina a subtrair-nos à autoridade divina; é o orgulho, de que não podemos triunfar senão pela humilde confissão da nossa indignidade e impotência, reconhecendo os direitos imprescritíveis do Criador sobre a sua criatura.
Assim pois, no estado de natureza, teríamos de lutar contra a tríplice concupiscência.
58. 4.° Quando o homem, em lugar de ceder aos maus instintos, cumpre o dever, pode com toda a justiça aguardar uma recompensa: esta será para a sua alma imortal um conhecimento mais extenso e profundo da verdade e de Deus (sempre, porém, conforme à sua natureza, isto é, analítico ou discursivo) e um amor mais puro e duradoiro. Se, pelo contrário, transgride livremente a lei em matéria grave e não se arrepende antes de morrer, não atinge o seu fim e merece um castigo, que será a privação de Deus, acompanhada de tormentos proporcionados à gravidade de suas culpas.
Tal houvera sido o homem no que se chama o estado de natureza pura, que aliás nunca existiu, pois que o homem foi elevado ao estado sobrenatural, ou no momento da sua criação, como diz Santo Tomás, ou imediatamente depois, como opina S. Boaventura.
Na sua infinita bondade, não se contentou Deus Nosso Senhor de conferir ao homem os dons naturais: quis elevá-lo a um estado superior, outorgando-lhe dons preternaturais e sobrenaturais. (CTAM)