Julius Evola
Se quisermos aprofundar o que há de essencial no conjunto das lendas cavaleirescas e dos escritos épicos, aos quais — juntamente com muitas outras lendas análogas que com eles, de certa maneira, se relacionam — o ciclo do Graal pertence, devemos superar uma série de preconceitos, entre os primeiros dos quais se encontra aquele a que nós chamaremos o preconceito literário.
Trata-se da atitude de quem, na saga e na lenda, se recusa a ver qualquer outra coisa para além de uma produção fantástica e poética, individual ou colectiva mas, de qualquer modo, simplesmente humana, desconhecendo, portanto, aquilo que nela possa ter um valor simbólico superior e que não pode ser reduzido a uma criação arbitrária. Pelo contrário, é precisamente este elemento simbólico, a seu modo objectivo e supra-individual, que constitui o que há de essencial nas sagas, nas lendas, nos mitos, nas canções de gesta e nas epopeias do mundo tradicional 1. O que se pode e deve admitir é que esse elemento, no conjunto das composições, nem sempre resulta de uma intenção perfeitamente consciente. Especialmente quando se trata de criações de carácter semi-colectivo, não é raro o caso em que os elementos mais importantes e mais significativos tenham sido expressos praticamente sem o conhecimento dos seus autores, os quais mal se deram conta de obedecer a certas influências que, num dado momento, se serviram das intenções directas e da espontaneidade criadora de personalidades ou grupos particulares como meio para atingir os seus fins. Deste modo, mesmo nos casos em que aquilo que é composição poética ou fantástica parece estar, e está materialmente, em primeiro plano, um tal elemento não tem o mínimo valor de revestimento fortuito e de veículo de expressão, sobre o qual apenas um olhar dos mais superficiais se poderá deter. Pode mesmo admitir-se que alguns autores tenham apenas querido «fazer arte» e que o tenham conseguido, de tal maneira as suas produções vão directamente ao encontro daqueles que unicamente conhecem e admitem o ponto de vista estético. Isso não impede, contudo, que, procurando «fazer apenas arte», e na própria medida em que obedeceram a um impulso espontâneo, isto é, a um processo imaginativo incontrolado, eles tenham também feito outra coisa, que eles tenham conservado, transmitido ou feito agir um conteúdo superior, que o olhar experiente saberá sempre reconhecer e acerca do qual alguns autores seriam talvez os primeiros a espantar-se, se isso lhes fosse claramente indicado. [O Mistério do Graal]
Patrick Rivière
Lúcifer, em sua queda, perdeu a pedra, lapis ex coelis, lapsit exillis, que tinha incrustada na fronte 2, e que se fez em pedaços ao contato com a Terra. Assim impõe a tradicional lenda do Graal, cujo mito eterno se revestiu de outros aspectos, não menos simbólicos, como vimos anteriormente. Assim, a “pedra caída do céu” pôde encamar-se naturalmente na pedra escura encontrada em Pessinonte, simbolizando a deusa-mãe Cibele, e igualmente na “Kaaba” da Meca, no coração do mundo islâmico, trazida pelo anjo Jibrail [Gabriel] para o profeta Abraão. É também a “pedra do ângulo” [hajar er ruku] assimilada na pedra angular das Escrituras e representando, no plano alquímico, a pedra do “coignet” das catedrais góticas. Até os famosos “escudos dos Sálios”, a Tradição prescreve que tenham sido talhados em um aerólito, na época em que o imperador iniciado, Numa Pompílio 3, reinava em Roma, salientando por aí o poder mágico celeste que os caracterizava!
Se, em persa, gor-hal significa literalmente “a preciosa pedra talhada”, Urnâ [urna sugerindo vaso], na Índia, designa a pérola frontal ou terceiro olhoolho de Shiva, que é proveniente da interação vibratória das forças da alma, cuja sede, segundo a Tradição, fica na glândula pineal, e das forças da personalidade localizadas na glândula pituitária associada ao centro frontal superior: o ajna chakra. Essas vibrações intensas estão na origem do que o sábio Patanjali qualificava de “luz na cabeça” o que representa simbolicamente o coração do sol da iluminação!
Porém, o Graal é também um vaso, não nos esqueçamos; é o que contém o sangue de Cristo, mas sobretudo que serviu para realizar a transubstanciação, na tarde da Ceia, mudando o pão e o vinho no Corpo e no Sangue de Cristo, em Amor e Luz crísticos! Aquele que é a “Luz e a Vida” e que veio “acender o fogo sobre a terra” ofereceu seu corpo de carne ao mundo e seu corpo de Luz aos “homens de boa vontade”, que, pela Eucaristia, comungam na divindade de Cristo. O mistério eucarístico se cumprirá assim através das duas espécies, do pão e do vinho 4 — símbolos de abundância e de vida do alimento celeste 5] para gerar a fusão divina. O Mestre Eckhart não afirmaria, com justa razão, “O homem é na verdade Deus, e Deus é na verdade o homem”? [Patrick Rivière: Os Caminhos do Graal]
René Guénon
No que se refere ao simbolismo do Graal, é necessário observar que, embora seja mais habitualmente descrito como um vaso e seja essa a sua forma mais conhecida, é também, às vezes, citado como uma pedra, o que ocorre em particular no caso de Wolfram von Eschenbach. E, de fato, pode ser as duas coisas ao mesmo tempo, pois se diz que o vaso foi talhado numa pedra preciosa que, por ter-se desprendido da fronte de Lúcifer quando de sua queda, é também “caída dos céus” [v. pedra descida do céu]. [Guénon]
O que parece aumentar ainda mais a complexidade do simbolismo do Graal, mas que pode na realidade fornecer a “chave” de certas conexões, é que o Graal além de vaso [grasale] é também um livro [gradale ou graduale]. Em certas versões da lenda, fala-se não exatamente de um livro, mas de uma inscrição traçada sobre o cálice por um anjo ou pelo próprio Cristo. [Guénon]
A tradição bíblica menciona uma “taça oracular” de José [v. pedra oracular], que poderia ser vista como uma das formas do próprio Graal. E, coisa curiosa, encontramos precisamente um outro José, José de Arimateia, do qual se diz ter-se tomado o possuidor ou o guardião do Graal e tê-lo trazido do Oriente para a Bretanha. É surpreendente que não se tenha jamais prestado atenção a tais “coincidências”, no entanto muito significativas. [Guénon]
- No que diz respeito ao sentido específico que nós damos ao termo «mundo tradicional», é indispensável uma referência às nossas obras «Rivolta contro il Mondo Moderno», Roma, 1969; e «Maschera e volto dello spiritualismo contemporaneo», Edizioni Mediterranee, 1971.
É o mesmo sentido que R. Guénon e o seu grupo lhe deram. Cf. «A crise do Mundo Moderno», de René Guénon, publicado nesta mesma colecção [A. C. C.].[↩] - Dizem também que Lúcifer, ao cair, teria se chocado com um astro pela aba de sua coroa, e, segundo a gnose síria, São Miguel destacou a esmeralda lançando Lúcifer por terra.[↩]
- Numa Pompílio era um discípulo de Pitágoras [Ovídio, As Metamorfoses, livro XV] e um sábio iniciado cuja esposa foi a célebre Egéria. Foi a origem da instituição das Vestais, virgens sagradas que deviam manter o Fogo sagrado. Quanto ao colégio dos Sálios, comportava doze membros, sugerindo os doze signos do zodíaco.[↩]
- “Pão, literalmente, quer dizer a substância que contém tudo, e vinho, a substância que tudo vivifica”, in Eckartshausen, La Nuée sur le sanctuaire, ed. Amitiés spirituelles, p. 138.[↩]
- Os cátaros enunciavam assim o Pater Noster. “Dai-nos hoje nosso pão celestial [ou ainda “supersubstancial”]”: “Pois, o pão de Deus é aquele que vem do céu e que dá vida ao mundo [João, VI, 33]. “Eu sou o pão vivo” [João VI, 35[↩]