Joachim Jeremias — «A Mensagem Central do Novo Testamento»
VIDE: PAI
A PATERNIDADE DE DEUS NOS EVANGELHOS
Dever-se-ia considerar esta maneira infantil de se dirigir a Deus como a última etapa do desenvolvimento geral das relações do homem com Deus, ou não existiria aí algo mais? Para obter a resposta, ampliemos o nosso exame das fontes.
Até agora nos ativemos à invocação de Deus como Pai nas orações de Jesus. Daremos um passo adiante, considerando as palavras em que Jesus fala de Deus como de um pai. Ou seja, nossa intenção vai passar da invocação “meu Pai” à maneira pela qual Jesus diz que Deus é “Pai”.
Encontramos, nos Evangelhos, nada menos do que sessenta vezes a palavra Pai para Deus nos lábios de Jesus. À primeira vista, não parece haver a menor dúvida de que, para Jesus, “Pai” seja a designação de Deus. Mas será assim mesmo? Ao se classificar os textos de acordo com as cinco camadas da tradição que se podem discernir nos Evangelhos, achamo-nos diante do seguinte quadro (os paralelos sinóticos são contados uma só vez, e a invocação “Pai” é excluída):
||Marcos|3 vezes||Ditos comuns a Mateus e a Lucas (coleção dos Lógia)|4 vezes||Ditos próprios de Lucas|4 vezes||Ditos próprios de Mateus|31 vezes||João|100 vezes||
Este exame mostra que houve uma crescente tendência a introduzir a designação de Deus como Pai nas palavras de Jesus. Marcos, a coleção dos Lógia e os elementos próprios de Lucas, todos estão de acordo de modo que se pode dizer que Jesus se servia da palavra “Pai” para designar a Deus somente em certas circunstâncias. Em Mateus, acha-se uma progressão sensível no uso do termo, e em João “Pai” quase que se tornou sinônimo de Deus. Jesus, aparentemente, servia-se do nome. de “Pai” unicamente em circunstâncias particulares. Mas por quê?
Os poucos casos de uma designação de Deus como Pai, que as camadas mais antigas da tradição testemunham, são de dois tipos: um primeiro grupo, em que Jesus fala de Deus como “vosso Pai”, e um segundo grupo em que Jesus o chama de “meu Pai”. Os ensinamentos sobre “vosso Pai” apresentam Deus como o pai que sabe do que necessitam seus filhos (Mt 6,32 e par. Lc. 12,30), que é misericordioso (Lc 6,36) e de bondade infinita (Mt 5,45), que pode perdoar (Mc 11,25), e cujo prazer é conceder o reino ao pequeno rebanho (Lc 12,32). Nas camadas mais antigas da tradição, as afirmações sobre “vosso Pai” parecem terem sido todas dirigidas aos discípulos. É uma das características da didaché (instrução) reservada aos discípulos, do ensinamento esotérico de Jesus. Àqueles que estavam fora do círculo, parece que Jesus não falou de Deus como Pai a não ser por meio de parábolas e figuras.
Entre os ditos esotéricos, o mais importante é Mt 11,27 e o par. Lc 10,22:
Tudo ME foi entregue por meu Pai,
e ninguém conhece o Filho senão o Pai,
e ninguém conhece o Pai senão o Filho
e aquele a quem o Pilho o quiser revelar.
Em sua História de Jesus[[Die Geschichte Jesu, Leipzig, 1876, 2a ed., p. 422.]], Karl von Hase, que há cem anos era professor de História da Igreja em lena, foi o primeiro a comparar este trecho sinótico com um raio caído do céu joanico. Neste texto, duas coisas sobretudo saltavam à vista como joanicas: primeiramente, a frase sobre o conhecimento mútuo que era considerada como um termo técnico tirado do misticismo helenístico; a seguir, a designação de Jesus como “o Filho” que caracteriza a cristologia joanica. Por muito tempo se teve como certo que Mt 11,27 era produto do cristianismo helenístico. Todavia, há não muito tempo, a corrente começou a mudar. Reconheceu-se cada vez mais que, como o expressou T. W. Manson, “a passagem está cheia de torneios de frase semíticos e certamente de origem palestinense”, ou, como o disse W. L. Knox, é “puramente semítico”[[T. W. Manson, The Sayings of Jesus, Londres, 1937-1950, 79; W. L. Knox, Some Hellenistic Elements in primitive Christianity (Schweich Lectures 1942), Londres, 1944, p. 7.]]. De fato, a linguagem, o estilo e a estrutura possibilitam situar este trecho num meio de língua semita[[W. D. Davies chega à mesma conclusão, quando compara o papel do “conhecimento” em Mt 11,27 e nos manuscritos; ele mostra que nos dois casos encontra-se a mesma mistura de intuição escatológica e de conhecimento de Deus (“Knowledge in the Dead Sea Scrolls and Matthew 11,25-30”, in: Harvard Theological Revieiv 46 (1953) PP. 113-139, reeditado em W. D. Davies, Christian Origins and Judaism, Filadélfia e Londres, 1962, pp. 119-144).]].
É possível responder, num plano puramente linguístico, às duas objeções que acabam de ser mencionadas. Já em 1898, G. Dalman[[G. Dalman, Die Worte Jesu I, Leipzig, 1898, 2? ed. — 1930, PP. 23ls (tr. inglesa: The Words of Jesus I, Edimburgo, 1902, pp. 282s).]] chamou a atenção para o fato de que o hebraico e o aramaico não têm pronomes que expressem a reciprocidade (“um e outro”, “cada um”). Servem-se, no seu lugar, de uma circunlocução para falar de ação recíproca. Além disto, é preciso lembrar-se de que em aramaico, e em particular com referência às figuras e às comparações, o artigo indefinido é muitas vezes usado num sentido genérico. Levando-se em conta estes fatos, é preciso traduzir Mt 11, 27 do seguinte modo: “Como só um pai conhece o seu filho, assim só um filho conhece seu pai”. Isto significa que o texto não fala mais de uma união mística (unto mystica) fundada em um conhecimento recíproco, e não emprega o título cristológico “o Filho”. As palavras de Jesus expressam simplesmente uma experiência cotidiana: só um pai e um filho é que se conhecem mutuamente. Se isto está certo, então Mt 11,27 não é um versículo joanico no meio de elementos sinóticos, mas antes um dos temas que a teologia joanica haveria de desenvolver. Se não houvesse pontos de partida desta natureza dentro da tradição sinótica, a origem da teologia joanica permaneceria um eterno enigma.
A palavra relatada por Mt 11,27 constitui uma perícope de quatro linhas. O primeiro versículo indica o tema: “Tudo ME foi entregue por meu Pai”. Isto é: Meu Pai ME concedeu um total conhecimento de si mesmo. Os três versículos restantes elucidam este tema por meio da comparação “pai-filho”. Livremente parafraseados, eles dizem: “E porque um pai e um filho se conhecem verdadeiramente um ao outro, um filho pode revelar a outros os pensamentos mais secretos do seu pai”. Todavia, é preciso saber que a relação “pai-filho” é familiar na apocalíptica palestinense para ilustrar a transmissão de uma revelação. “Como um pai eu lhe revelei todos os segredos”, diz Deus no (Terceiro) Livro de Enoque[[3 Henoch 48 (C.) 7.]]. E em outra passagem, um rabi relata: o mensageiro celeste ME mostrou as coisas que estavam tecida na cortina celeste. . . “indicando mas com o dedo, como um pai que ensina ao seu filho as letras da Torah”[[3 Henoch 45,1s.]]. Portanto, se Jesus interpreta o tema “Tudo ME foi entregue por meu Pai” com o auxílio desta relação pai-filho, o que ele quer dar a entender sob o véu de uma figura cotidiana é o seguinte: como um pai que se dedica pessoalmente a mostrar ao seu filho as letras da Torah, assim Deus ME transmitiu a revelação de si mesmo, e, consequentemente, só eu posso ensinar aos outros o verdadeiro conhecimento de Deus.
Este lógion, pelo qual Jesus dá testemunho de si mesmo e de sua missão, não está isolado nos Evangelhos[[Cf. p. ex. Mc 4,11; Mt 11,23; Lc 10,23s.]]. Citamos aqui apenas uma variante de Mt 11,27 que remonta a uma antiga tradição aramaica[[Irineu, Adv. Haer. I, 13,2; W. Grundmann, Die Geschichte Jesu Christi, 1956, p. 80.]] e esteve espalhada no séc. 2 entre a seita gnóstica dos marcosia-nos. Segundo este texto, Jesus exclamou:
Sim, meu Pai, pois tal foi tua vontade a meu respeito.
Esta variante da exclamação em Mt 11, 26 poderia muito bem ser secundária. Todavia, ela faz vibrar a nota original da alegria de Jesus pela revelação que lhe foi concedida, alegria que impregna igualmente o nosso texto:
“Sim, Abbá, porque assim foi do teu agrado”.
Assim, quando Jesus falava de Deus como de “meu Pai”, ele aludia não a urna familiaridade e a uma intimidade com Deus que fosse acessível a todo mundo, mas a uma revelação única que lhe fora concedida. Ele funda sua autoridade sobre o fato de Deus o ter misericordiosamente dotado da plenitude da revelação, revelando-se a si como só um pai pode se revelar ao filho. Abbá é então uma palavra que sugere a revelação. Ela representa o cerne da consciência que Jesus tinha de sua missão.
Procurando-se as prefigurações desta relação única para com Deus como Pai, deve-se remontar à profecia de Natã a respeito de Davi: “Eu serei para ele um pai e ele será para mim um filho” (2Sm 7,14, e o par. lCr 17,13), e às palavras referentes ao rei nos Salmos 2,7; 89,27s.
Ele ME invocará: Vós sois meu pai, meu Deus e a rocha de minha salvação! E eu o constituirei o meu primogênito, excelso entre os reis da terra.
Das Pseudo-epígrafes, podemos citar a promessa feita ao Messias sacerdotal, de que Deus lhe falará “com uma voz paternal” (Testamento de Levi 18,6), e a afirmação referente ao Messias de Judá, que assegurava que “as bênçãos do Pai santo” serão derramadas sobre ele (Testamento de Judá 24,2). Isto significa que o “meu Pai” de Jesus só foi preparado no contexto das esperanças messiânicas. Mt 11, 27 implica, portanto, que as promessas foram cumpridas em Jesus.