O homem da gnose sempre tem consciência — esta, pelo menos, é a sua predisposição e a sua intenção — do enraizamento ontológico das coisas: para ele, a acidência não é apenas isto ou aquilo; é, antes de tudo, a manifestação diversificada e inesgotável da Substância. Intuição que, na medida em que é concreta e vivida, exige e favorece não só o discernimento e a contemplatividade mas, também, a nobreza de caráter, pois o conhecimento do Todo implica o homem total. Essa nobreza está, aliás, totalmente contida na própria contemplatividade, uma vez que o homem é levado a contemplar apenas o que ele já é de certo modo e em certo grau.
A acidência é o sujeito e o objeto contingentes; é a contingência, pois somente a Substância é o Ser necessário. A acidência é o mundo que nos cerca e a vida que nos envolve; é o aspecto — ou a fase — do objeto e o ponto de vista — ou o presente — do sujeito; é a nossa hereditariedade, o nosso caráter, as nossas tendências, as nossas capacidades, o nosso destino; o fato de ter nascido com tal forma, em tal lugar, em tal momento e estar sujeito a tais sensações, tais influências e tais experiências. Tudo isso é acidência e tudo isso não é nada, pois a acidência não é o Ser necessário; os acidentes são, por um lado, limitados e, por outro, passageiros. E o conteúdo de tudo isto, em última análise, é a Felicidade ;é ela que nos atrai graças a mil reverberações e sob mil artifícios; sem saber nós a queremos em todas nossas veleidades. Na acidência compressora e dispersante não somos verdadeiramente nós mesmos; nós o somos apenas no prolongamento sacramentai e libertador da Substância, sendo o verdadeiro ser de toda criatura, em última análise, o Si-mesmo.
Se compararmos a divina Substância à água, poderemos dizer que os acidentes são como as ondas, as gotas, a neve, o gelo; fenômenos do mundo ou fenômenos da alma. A Substância é puro Poder, puro Espírito, pura Felicidade; a acidência retrata essas dimensões de modo limitativo, ou até mesmo de modo privativo. Por um lado, ela “não é” a Substância; por outro, ela “nada mais é” que a Substância. Esotericamente falando, há apenas dois pontos de vista a considerar: o da transcendência e o da imanência; conforme o primeiro, a realidade da Substância anula a do acidente; de acordo com o segundo, as qualidades do acidente — começando pela sua realidade — só podem ser as da Substância. Exotéricamente falando, o primeiro ponto de vista é absurdo, visto que as coisas existem. E o segundo é ímpio; trata-se do panteísmo, visto que as coisas não podem ser Deus. Que, por um lado, as coisas existem e que, por outro, elas não são Deus, o esoterismo o explica perfeitamente. Mas ele acrescenta a essas duas constatações iniciais uma dimensão de profundidade que contradiz seu exclusivismo superficial e que, de certa forma, é planimétrica. Enquanto o exoterismo se fecha no mundo da acidência e disso se vangloria quando quer evidenciar o seu sentido do real face ao que lhe surge como nuvens, o esoterismo tem consciência da transparência das coisas e da Substância subjacente, cujas manifestações são a Revelação, o Homem-Logos, o Símbolo doutrinal e sacramental e, também, no microcosmo humano, a Intelecção, o Coração–Intelecto, o Símbolo vivido. “Manifestar” é “ser”; Denominação e Denominado são misteriosamente idênticos. O santo, e principalmente o Homem-Logos, é, por um lado, Manifestação da Substância na acidência e, por outro, Reintegração do acidente na Substância.