Abellio: a estutura absoluta

Resumo de ABELLIO, Raymond. La structure absolue. Paris: Gallimard, 1965, p. 43-52.

Na atitude natural, “me” vejo simplesmente confrontado ao mundo, face a face com ele, em dualidade simples com o mundo. Vejo algo, por exemplo um livro posto sobre a “minha” mesa, e a visão não vai além desta relação simples: este livro e mim mesmo, o par candidato a sujeito-objeto, mas de fato um percebido e um percebedor. No entanto, é preciso examinar mais de perto o desdobrar de um terceiro aspecto, geralmente ignorado, formando uma tríade entre percebido e percebedor: o perceber ou a percepção. Sigamos o percurso deste modo de realização da realidade em percebedor-percebendo-percebido, proposto por Raymond Abellio1.

  • primeiro, o livro sobre a mesa é parte do mundo, e se tornar visível é um destaque do mundo, pois o mundo não é uma soma ou agregado mas a condição a priori de destaques, aparições, ou seja, o mundo é aqui um suporte unitário e global de possíveis destaques do mesmo; o mundo deve portanto ativar para “mim”, pôr diante de “mim”, algo até então passivo, algo candidato a objeto; não cabe aqui um debate sobre a primazia do mundo ou do corpo na percepção, ou seja, quem dispara a percepção; seria um debate semelhante àquele que tenta descobrir quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha; o fato é que uma espécie de corrente ou fluxo se estabelece entre o mundo e algo candidato a objeto, que surge ou se destaca do mundo; o livro que vejo é algo do mundo que se faz posto diante de mim, portanto um objeto do mundo, e para que seja visível, deve se destacar de alguma maneira sobre um fundo que assim se torna mais ou menos distinto; este fundo, o mundo enquanto suporte de todos os surgimentos que se candidatam a objetos, é transparente, não recai sobre a minha visão, mas é o horizonte que a torna efetiva, a sustenta;
  • segundo, algo a ser um objeto qualquer, se destacando do mundo, ou sendo individualizado do mundo, se torna por conseguinte ativo em relação a este último, que, por sua vez, se torna passivo; o mundo se mantém assim enquanto fundo mais ou menos indistinto, verdadeiro suporte unitário e global de candidatos a objetos, ou seja, condição a priori da emergência deste mesmo candidato a objeto; neste sentido, é que o mundo se apresenta como “pano de fundo”, horizonte de objetividade, não “visível” em si, mas que assegura, por sua vez, a visão de candidatos a objetos …
  • o candidato a objeto destacando-se, tomado por um sentido como a visão e tomando o sentido que o eleje objeto (um jogo de palavras que indica tanto o fato do objeto ganhar presença nos órgãos de sensação, como também significado), rejeitando certa indistinção com o resto do mundo, estabelece com este último, no entanto, uma primeira relação ou razão do tipo Objeto/Mundo; pode-se mesmo dizer que tal objeto se tornou ativo em relação ao resto do mundo, considerado então passivo; existe assim, e sempre existirá, uma dualidade forma-fundo do lado do percebido…
  • esta mesma dualidade também se instala do lado de “mim”, daquele que percebe, um percebedor “relativo ao corpo” (instância contingente e conjuntural do Percebedor Absoluto) e candidato doravante a sujeito; um ou mais sentidos (visão, audição, tato etc.) se abrem e se tornam ativos, se destacando do fundo passivo, em repouso, do corpo; no exemplo do livro sobre a mesa, é preciso que minha vista, que enxerga o livro e se interessa especialmente nele, se abra e se torne ativa (+), sobre o fundo posto em repouso de meu corpo; este se torna passivo (-) e suas demais funções se fundem no fluxo de uma certa indistinção; em nossa figura, uma rotação tem lugar, do objeto para a vista, ou seja, um sentido se cria;
  • a vista se tornando ativa, acolhe o objeto, mas o fato capital é que, sob a excitação da vista, uma corrente se estabelece da vista (+) para o corpo inteiro (-); o corpo, anteriormente feito passivo pela abertura da vista, se torna ativo, mas a um grau de atividade maior do que antes do inicio da percepção; do lado do percebedor doravante sujeito (do latim subjectum, lançado ou posto sob), forma-se assim uma segunda relação do tipo Sentido/Corpo, em interação com a primeira relação Objeto/Mundo…
  • meu olhar deu o objeto ao corpo e meu corpo inteiro se apropria do objeto, ou “sujeita” o objeto, tornando-o um instrumento ou ferramenta, segundo a vigência do primeiro modo de desvelamento do ente ou sendo, caracterizado por Aristóteles2, a techne; esta apropriação deve ser entendida como uma intensificação do objeto; em outros termos, meus sentidos, por seu poder discriminador, têm por missão distinguir, enfocando os objetos do mundo, mas meu corpo inteiro tem por missão, por seu poder integrador, reintegrar em si, sob a forma de instrumentos ou ferramentas, estes objetos distintos, e de assim se abrir a um novo modo de ser do mundo; com referencia à figura acima, por uma segunda rotação, em sentido inverso da primeira, o corpo, novamente ativo, como no inicio da percepção, fecha o circulo se voltando para o mundo feito então passivo; o corpo, graças aos novos poderes, devidos ao instrumento ou ferramenta incorporado, vai animar mais uma vez o mundo, que volta a se tornar ativo, promovendo um novo ciclo, com novas emergências de objetos, sujeitos, instrumentos, etc…
  • tanto o objeto, quanto o sentido da vista são emergências locais de uma realidade global, que devem vir a ser “re-enraizadas” ou arriscam voltar a se dissolver no mundo e no corpo, respectivamente;
  • a constituição comum de objeto e de sujeito, através dessa análise da percepção, indica que, do lado do objeto, temos uma relação ou razão Objeto/Mundo e, do lado do sujeito, outra razão Sentido/Corpo; estas duas razões estão associadas na forma de uma proporção que as combina da seguinte forma: Objeto/Mundo = Sentido/Corpo; assim, como já havia reconhecido Husserl, a colocação em relação de dois termos ou de dois polos, e somente dois, como sujeito e objeto, é uma noção ingênua, pois não há polos ou termos que sejam estáveis na gênese do “eu”; uma relação deste gênero oculta na verdade a emergência de uma proporção, ou seja, de um ciclo de relações, como na figura acima, levando à multiplicação, à intensificação e à transmutação dos polos ou dos termos..
  • essa proporção não é fechada nem estável, e seus termos não são fixos; é uma proporção não isolável, tomada e levada em um movimento dialético; pelo esquema da figura acima, é possível notar que o processo de percepção “crucifica” um “mim-mesmo”, a cada ciclo, no espaço-tempo; o que importa, no entanto, é compreender bem o sentido da passagem do termo à razão ou relação, enquanto acoplamento de termos, e da razão à proporção, enquanto acoplamento de razões; não importa aqui discutir quem comanda toda a operação, mundo ou pessoa, mas sim entender sua dação, seu acontecimento e sua vigência.

A “estrutura absoluta” pode ser entendida como um apontamento para o operação do que os gregos denominavam “noûs”, que Heidegger traduz por “o notar que apreende o notado”3). Ou seja, a estrutura absoluta aponta para os modos de desvelamento “nos quais o ser-aí descerra o ente (o sendo) como atribuição e negação”4, com relevância maior para os modos de desvelamento “techne” (arte, perícia, técnica), vetor para baixo na figura acima, e “sophia” (compreensão, sabedoria), vetor para cima na figura.


  1. ABELLIO, Raymond. La structure absolue. Paris: Gallimard, 1965, p. 43-52. 

  2. Ética a Nicômaco, Livro VI, III 

  3. HEIDEGGER, Martin. Platão o Sofista. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 22 

  4. Cinco são os modos, portanto, nos quais o ser-aí humano descerra o ente como atribuição e negação. E esses modos são: saber-fazer [techne] – na ocupação na manipulação, na produção –, ciência [episteme], circunvisão [phronesis] – intelecção –, compreensão [sophia], suposição apreendedora [noûs]” (ibid, p. 21). 

Raymond Abellio