A longa cadeia das histórias antes da história, em que a Ilíada e a Odisseia formavam algumas malhas, abria-se com a cópula de Urano e Geia, fechava-se com a morte de Odisseu. O círculo abria-se com a mistura do céu e da terra, encerrava-se com uma briga mesquinha, um incidente mortal, com o jovem Telégono que, em terra estrangeira, sem saber matava o pai, e velho Odisseu, com o aguilhão de uma raça. Após Odisseu, começa a vida sem heróis, quando as histórias não acontecem exemplarmente, mas se repetem e se narram. O que acontece é a mera história.
Também por essa proximidade ao limite, pelo fato de colocar-se no ponto de fechamento do círculo, Odisseu é o herói que mais frequente-mente conta histórias. Iniciava com a augusta e sufocante obscuridade das origens, que exigia silêncio; concluía com a figura deste guerreiro camuflado em comerciante fenício, que alguns suspeitavam ser um mercador fenício camuflado de guerreiro. Odisseu convidava à irreverência, à insinuação. Menos do que qualquer outro herói, Odisseu suscitou respeito. Murmurava-se até que houvesse sido o amante de Homero. Por isso o poeta o teria tratado tão bem, ocultando muitos de seus traços vergonhosos, chegando até a expurgar da Iliada a figura de Palamedes, com o fito de não deixar nenhum traço que conduzisse ao seu traiçoeiro assassinato, engenhado por Odisseu. Por isso contara que ele teria derrotado as sereias, quando na verdade — alguns esclareciam zombeteiramente — teriam sido as sereias a desdenhar aquele marinheiro “murcho para as coisas eróticas”, com o ‘‘nariz amassado”. Quando, no final da Odisseia, Zeus faz descer sobre Ítaca uma concórdia provisória, para fechar o poema, parece que as cortinas caem com excessiva pressa, antes que surjam muitas perguntas. Porém, nos séculos posteriores a Homero, certas perguntas sobre Odisseu e determinadas respostas continuariam a frequentar tantas bocas, num prolongado fogo de palha.
(CalassoNCH)