Alquimia Espiritual [IAFP]

Excertos da introdução de Roberto Ahmad Cattani de sua versão em português da “Alquimia da Felicidade Perfeita”, de Stéphane Ruspoli

Segundo Ali, companheiro e sucessor do Profeta Mohammad, “a alquimia é a irmã da profecia”, e veremos neste livro que Ibn Arabi chama Jesus de “mestre da Alquimia”. Bastam estes elementos para mostrar que a alquimia da qual fala o presente livro não é um embrião de pesquisa científica físico-química ante litteram, como de fato foi em vários casos (nos tratados de ar-Razi, por exemplo, ainda no século IX); ou pior, os delírios da alquimia vulgar, perpetrada por personagens ambíguos entremeando conhecimentos secretos e cobiça na busca de um método para fabricar metal precioso partindo de metais comuns.

A alquimia de Ibn Arabi é puramente espiritual e visionária: “Conheço a alquimia pelo caminho da revelação intuitiva, e não pelo atalho de um conhecimento aprendido”, escreveu — e poucos ousariam afirmar o mesmo en connaissance de cause. Esta alquimia inteiramente interiorizada é irmã, isso sim, da Kimyya mística de um Jabir Ibn Hayyan e da grande alquimia europeia, de um Nicolas Flamel ou de um Atanasius Kircher, mas não se identifica com elas. Estas representam uma forma de mística que usa o processo (físico e químico) de trabalho sobre a matéria como suporte simbólico e psíquico para as operações espirituais. “O que é o fogo transformador da matéria, na perspectiva do homem encaminhado para a purificação, a não ser a oração incessante? E o que é a fornalha, a não ser o coração do operante?” O laboratório nesta ótica é o lugar da Obra e da oração, o “laboratório” conforme a bela expressão de Jean Canteins.

Nesta perspectiva, a “transmutação” alquímica opera-se sobre a alma, não (ou melhor, não só) sobre os metais. A busca e a Obra, por meio de um processo que pode durar a vida inteira, são a tentativa do alquimista de identificar-se, por meio do Método e com a ajuda de Deus, com o Ser, de transmutar a alma decaída (o metal “vil”) no espírito primordial, puro e divino (o ouro “sublime”). A alma humana é tratada como se fosse uma substância bruta que deve ser filtrada, destilada, depurada, queimada, calcinada, sublimada, volatilizada e reconstituída, para tornar-se espírito.

A alquimia árabe, ou muçulmana, nasceu no século VII da nossa era, ainda no primeiro século do Islã, e continua ainda na nossa época, com treze séculos de prática e de transmissão oral e escrita ininterrupta. O maior alquimista de todos os tempos, segundo a tradição, foi um sufi xiita, Jabir Ibn Hayyan (conhecido no Ocidente medieval por Geber). A tradução em latim dos textos alquímicos árabes a partir do século XII suscitou na Europa um interesse cada vez maior pela alquimia. No Ocidente cristão, podemos citar grandes alquimistas como Roger Bacon, Alberto, o Grande, Arnold de Villanova, Ramon Llull, na época medieval; Paracelso, Agrippa, Basilius Valentin, Robert Fludd, Johann Valentin Andreae, Michael Maier, da Renascença até o Iluminismo, e Eugène Canseliet em tempos recentes.

Tanto para o Islã como para o Cristianismo, que vêem geralmente no mundo e nos fenômenos naturais algo decaído e afastado de Deus, a alquimia trouxe uma concepção sacralizada e uma visão espiritual da Natureza e uma reflexão sobre os mistérios do mundo material como símbolo e projeção na terra do cosmo e dos grandes sistemas: “Na alquimia a Natureza é sagrada, e todas as operações praticadas sobre ela têm efeito sobre a alma do alquimista, em virtude da analogia entre microcosmo e macrocosmo. (…) A concepção gnóstica do cosmos traz consigo uma visão da Natureza como símbolo e o apreço das ciências que tratam os fenômenos naturais não como fatos, mas como reflexo dos níveis superiores da realidade. Consideradas sob este aspecto simbólico, a alquimia e a astrologia são os suportes cósmicos da contemplação gnóstica”.

A alquimia contribuiu também para as duas grandes religiões, “uma linguagem completa da alma, descrevendo seu itinerário do estado de caos até a iluminação final: um processo de evolução que Ibn Arabi batizou de Alquimia da Felicidade”, descrevendo-o em detalhe neste livro. Assim, por exemplo, neste livro Ibn Arabi vale-se do termo árabe “manzil” para as “moradias celestes” onde param os peregrinos, como sinônimo e equivalente de “maqâm”, que é usado especificamente no esoterismo islâmico para indicar as “Estações espirituais”, as etapas da Via iniciatória: “As Moradias espirituais levam este nome só no caso em que sejam etapas na Via onde descer (nuzul) antes de seguir caminho, sem intenção de fixar-se lá”.

Ibn Arab faz menção na Alquimia da Felicidade de três processos alquímicos ou etapas fundamentais da Grande Obra: a “obra ao negro” (nigredo em latim), a “obra ao branco” (albedo) e a “obra ao vermelho” (subdividida em citrinitas e iosis). Para entender melhor as categorias de Ibn Arabi, vejamos o que cada uma destas fases alquímicas simboliza: “Na obra ao negro, o homem afasta-se da ilusão cósmica, para mergulhar no oceano cósmico, que é fêmea. E uma espécie de morte, uma ‘descida ao inferno’. É a preparação do mercúrio, a matéria sutil do mundo. (…) Na obra ao branco, o alquimista serve-se dos aspectos sutis potenciais da matéria para alcançar a luz do Intelecto. Na frente dele, a “matéria” cósmica torna-se transparente na pureza virginal da Alma do Mundo (…). A obra ao branco é um estágio intermediário, assim como a prata coloca-se entre os metais inferiores e o ouro. O branco é a síntese de todas as cores, assim é também a obra ao branco, uma integração que prepara a matéria a seu destino espiritual final. A obra ao vermelho é a etapa final da purificação da alma, que se transforma em ouro na luz do Espírito que a envolve e a atravessa. (…) Esta é a fase da “união química” final, onde o enxofre “fixa” o mercúrio, onde o Sol conjunge a Lua, onde o Espírito desposa a alma”.

Como escreve René Guénon em “L’ésotérisme islamique”, “as várias ciências cosmológicas, a alquimia, a astrologia, e até a ciência das letras, traduzem as mesmas verdades em linguagens próprias às diferentes ordens de realidade, unidas entre elas pela lei da analogia universal, fundamento de qualquer correspondência simbólica”.

Ibn Arabi (1165-1240)