Excertos da Introdução de Roberto Ahmad Cattani de sua versão em português da “Alquimia da Felicidade Perfeita”, de Stéphane Ruspoli
O primeiro versículo da sura 17 do Alcorão, de forma bastante obscura, recita: “Glorificado seja Aquele que, durante a noite, transportou o Seu servo do Templo inviolável ao Templo longínquo, cujo recinto abençoamos, para mostrar-lhe alguns dos Nossos sinais. Saber que Ele é o Ouvinte, o Vidente”. O que está mencionado sucintamente aqui é a misteriosa viagem noturna do Profeta Mohammad, levado da Sagrada Mesquita de Meca até aquela de Jerusalém, e daí para os céus, até a Presença de Deus. Esta viagem arcana é denominada em árabe miraj, assunção celeste.
Segundo o relato posterior do Profeta aos seus seguidores, “eu estava dormindo no recinto sagrado quando o Arcanjo Gabriel veio me sacudir com o pé até eu acordar e levantar. Ele me fez montar um bicho que parecia uma mula com asas, e cada passo dela chegava até onde meus olhos podiam enxergar”.1 Montado em Buraq e escoltado por Gabriel, Mohammad parte de Meca e chega em poucos instantes a Jerusalém, onde é recebido por um grupo de profetas, entre os quais Abraão, Moisés e Jesus, e todos rezam juntos. Do Templo de Jerusalém, Mohammad é levado por Buraq e guiado pelo Arcanjo através dos sete Céus, onde ele encontra novamente oito Profetas (aqueles mesmos que ensinarão o adepto na ascensão da Alquimia da Felicidade), desta vez despojados de suas aparências corpóreas e “incorporando suas realidades celestiais”. Aos companheiros de fé, na volta, Mohammad contou que ele chegou “até a distância de três tiros de arco da Presença Divina”. Sobre os Paraísos que ele visitou, ele disse: “Uma parcela de Paraíso do tamanho de um arco é melhor que tudo o que há debaixo do sol, desde que se levanta até que se põe”.2
O ápice da ascensão de Mohammad é a Árvore de Lótus do Limite Último, conforme contou o Profeta: “As raízes da Árvore de Lótus estão no Trono (de Deus), e ela marca o limite do conhecimento de qualquer sábio, seja ele Arcanjo ou Profeta-Mensageiro. Mais adiante é um mistério oculto, ignorado de qualquer um que não seja Deus”.3 A Luz Divina desce sobre a Árvore e a envolve num esplendor insustentável, mas o Profeta não baixa os olhos, e sustenta o clarão sem pestanejar.
Debaixo da Árvore de Lótus, o Profeta-Mensageiro recebe a Revelação que constitui o credo fundamental do Islã: “O Mensageiro crê no que foi revelado por seu Senhor, e todos os crentes creem em Allah, em Seus anjos, em Seus livros e em Seus mensageiros. Nós não fazemos distinção entre Seus mensageiros. Disseram: escutamos e obedecemos. Só anelamos a Tua indulgência, ó Senhor nosso! A ti será o retomo!”.4
O último episódio da viagem celeste de Mohammad pode deixar perplexo o leitor pouco acostumado com o pragmatismo islâmico em termos de doutrina e ética: ainda debaixo da Árvore, o Profeta recebe de Deus a ordem para que os muçulmanos rezem cinquenta vezes por dia. Na volta, durante a descida, Mohammad para para despedir-se de Moisés, e este pergunta-lhe quantas orações lhe foram ordenadas. Quando o Profeta responde-lhe, Moisés diz: “A oração congregacional é um fardo pesado, volte lá e peça ao Senhor para aliviar a carga para ti e para o teu povo”. Três vezes Mohammad volta, e três vezes Deus diminui o número de preces obrigatórias. Finalmente, ele consegue “apenas cinco, para cada dia e cada noite”. Ainda assim, Moisés insiste que é muito, mas Mohammad dessa vez rebate que está com vergonha de voltar mais uma vez. “E foi assim que a quem executa as cinco orações em boa fé e com a consciência da bondade de Deus serão atribuídos os méritos de cinquenta orações”.5
A Laylat al-miraj, a Noite da Viagem Noturna, representa simbolicamente o correspondente simétrico celeste da Noite da Descida do Alcorão na Terra, a Laylat al-qadr: numa é o Profeta que é levado até o Céu para receber a mensagem divina, na outra é a mensagem divina que é trazida até ele. Da mesma forma, F. Schuon lembra que o Profeta é designado com o nome Mohammad quando se refere ao mistério da Revelação, com a Descida, enquanto é designado como Ahmad (com a idêntica raiz etimológica, as letras m-h-d, raiz que indica a generosidade), quando se refere ao mistério da Ascensão.6
Uma descrição muito mais detalhada da viagem celeste do Profeta Mohammad encontra-se no Liber Scalae Machometi,7 tradução latina de 1264 de um original árabe hoje perdido, mas certamente conhecido por Ibn Arabi. “A ‘imitação’ desta experiência visionária e extática do profeta do Islã representará durante alguns séculos um objetivo constante e um incentivo profundo para as mais altas expressões da espiritualidade muçulmana: por isto, considera-se o miraj como uma imagem arquetípica fundamental da cultura religiosa que tem suas raízes no verbo corânico (…) Entre os sufis e os gnósticos islâmicos, impõe-se rapidamente o anseio de imitação da ascensão celeste: Mohammad é percebido como o modelo de herói místico, e o seu miraj como o protótipo de todas as êxtases visionárias”.8 Abu Yazid Bistami, grande mestre sufi do Khorasã, por exemplo, atribuiu-se uma ascensão in spiritu, através das mesmíssimas etapas que as do Profeta. A significação esotérica do miraj para os sufis é a de que ao homem que alcançou o conhecimento total e perfeito (como o adepto da Alquimia da Felicidade), mesmo mergulhado na “noite dos sentidos” (o sono do Profeta perto da Caba, ou a “selva oscura” de Dante), é dado ver antecipadamente (em vida) o seu Senhor e pregustar a beatitude final.
As etapas e as “estações” místicas (maqamat) da alma progredindo para a realização e a perfeição, com o tempo, distanciaram-se do simbolismo cosmológico da viagem celeste (céus, estações planetárias, Paraísos), para se tornarem paradigmas metodológicos e didáticos dos caminhos espirituais (Tariqat) ensinados pelos mestres sufis aos aspirantes e aos discípulos e dos estados da alma, em muitos casos rigorosamente codificados,9 sendo um deles a alquimia espiritual.
NOTAS