Iniciado na quaresma de 1346, o De vita solitária só veio a ser concluído cerca de dez anos mais tarde em Milão, dedicando-o seu autor ao bispo de Cavaillon, no actual departamento francês de Vaucluse (em italiano, Valchiusa), Filipe de Cabassoles, mais tarde patriarca de Jerusalém c cardeal. É o elogio da solidão e do silêncio, enquanto libertam das fastidiosas preocupações quotidianas e proporcionam tranqüilidade de espírito. Divide-se em duas partes. A primeira constitui uma ardente apologia da vida solitária, em que o conceito eremítico e religioso da solidão se confunde de contínuo com a idéia literária do bucolismo clássico: ao romper da alva o solitário, descansado e feliz, procura a paz e o silêncio de um bosque vizinho; ali, sentado em tapete de flores, saúda o raiar do sol e, alegre, com voz que lhe brota espontânea do peito, entoa louvores ao Senhor, enquanto seus devotos suspiros se acompanham com o cascatear buliçoso de cristalino regato ou os suaves lamentos das aves. Enchem-lhe os dias a prece, o estudo e honesto espaçar. Sem o conforto das letras, aliás, encarece o grande pré-renascentista italiano, a solidão é exílio, prisão, tormento; ao cultor das letras, pelo contrário, é pátria, liberdade, prazer — solitudo sine litteris, exsilium est, carcer, aculeus; adhibe litteras, patria est, libertas, delectatio (I, 3, 4, p. 35). Alternando a fadiga com o repouso, o solitário ocupa-se em ler e escrever: lê o que escreveram os antigos, escreve o que hão-de ler os vindoiros. Sua solidão é amenizada pelo espectáculo de uma natureza aprazível e amena, por visitas de amigos, pelo trato freqüente dos livros; “seja o ócio modesto e suave, não repulsivo; seja a solidão tranqüila, não agreste — solidão, em suma, não selvatiqueza, e tal que quem a procura deva admirar-lhe a humanidade.” Na segunda parte, Petrarca multiplica exemplos, desde os patriarcas e profetas bíblicos até os anacoretas da Tebaida, e inúmeros povoadores do ermo, como S. Francisco e S. Celestino V, reabilitado intencionalmente, ao que parece, contra o juízo infamante de Dante, que afirma, no canto II do Inferno: vidi e conobbi l’ombra di colui che fece per viltade il gran rifiuto. Do prior dos Camaldutenses, que lhe estranhara a omissão de seu S. Romualdo entre tantos solitários, de muito menor fama, recebeu Petrarca os dados para o Supple-mentum Romualdinum, 77, 4, 2. Junto com exemplos cristãos, e a-par dos Brâmanes e solitários de regiões hiperbóteas, não podiam faltar os predilectos filósofos e poetas clássicos, desde Horácio a Virgílio, de Cícero a Sêneca e aos grandes vultos da história de Roma.
Sobre a obra de Petrarca, cf. Pio Rajna. Il códice vaticano dei trattato De vita solitaria di Francesco Petrarca, na Miscellanea Ceriani, Milano, 1910 p. 640 e seg., A. Avena. La composizione dei trattato De vita solitária, na Rassegna critica delia letteratura italiana, XII, 1907. — Natalino Sapegno. Il Trecento, na Storia letteraria d’Italia, do editor Francisco Vallardi, Milão, 4a reimpressão, 1948, p. 223, 273, 631. — Na edição nacional de Petrarca da editora florentina Sansoni, deverá figurar o De vita solitária, entregue à competência de A. Roncaglia. Ao lado da tradução italiana de L. Asioli, Milão, Hoepli, 1927, dispusemos apenas do texto latino publicado por Ant. Altamura, ed. Gaspare Casella, Nápoles, 1943, muito mal acolhido pela crítica italiana. Veja-se, por exemplo, o que escreve a revista Leonardo, nova série, dez. de 1946, p. 355-356.
Se com o tratado de Petrarca cotejarmos o Boosco deleitoso, verificaremos que quase a metade do livro impresso por Hermão de Campos reproduz o De vita solitária, ou seja, com leves falhas e interpolações, do capítulo XVI ao capítulo CXVII. O próprio D. Francisco, nobre solitário, que desempenha o papel de protagonista, não passa de Francisco Petrarca. Não quer isto dizer que todas aquelas páginas sejam mera tradução, mais ou menos literal, do latim petrarquista, porquanto o nosso inteligente compilador conseguiu apresentar-nos um conjunto mais espiritual, menos erudito, mais poético: inspirando-se em ascetismo mais profundamente cristão, contenta-se com aduzir o pensamento de clássicos como Cícero ou Virgílio, em-vez de transcrever-lhes as formais palavras, e transforma seu arrazoado em solene cenário onde, um após outro, comparecem, devidamente caracterizados, os apologistas da vida do ermo. Escusamos largas transcrições para justificar a dependência de nosso livro em relação a Petrarca. Apenas citaremos, a título de exemplo, algumas frases a esmo, contrapondo os dizeres do Boosco referentes a S. Bento, e os correspondentes do De vita solitária, II, 4 (p. 91-92 da edição Altamura):
Sed ubi iam dux occidentalium monachorum Benedictus remanet? At quis eum Christi fidelium non novit? Quis sanctum iuvenile consilium non audivit? Qui, quamvis a prima aetate virtutum hospes, voluptatum hostis, arduam caeli viam esset ingressus, ut compendiosius tamen ac tutius pergeret, Romam Nursiamque dimisit, quarum in altera educatus, ortus ex altera, utriusque ámorem usu ac natura contraxerat; vicit tamen carnales affectus animae cura petiitque felix puer, non modo solitudinem, sed desertum et illud immane, sed devotum specus, quod qui viderunt vidisse quodammodo paradisi limen credunt.
Boosco, cap. 189, fl, 43 d- 44 a, (na presente edição, n. 513, p. 200) — Mas u nos fica, irmaão, o guiador dos monges do Ocidente, Sam Beento? E qual é o fiel cristaão que o nom conhoce? E quem nom ouviu o seu conselho, sendo êle mancebo? Como quer que êle, dês a sua primeira idade, fosse hóspede de virtudes e êmígoo das deleitações carnaaes, e começasse de andar pela alta carreira do ceeo, pero, por tal que andasse mais toste e mais seguramente, leixou a cidade de Roma, em que foi criado, e a cidade de Nurça, em que naceu, as quaes êle amava muito polo uso e polo natureza. E pero venceu as afeições carnaaes, com o cuidado que havia da sua alma, e, seendo moço, foi-se pera o deserto, meteu-se em ua rocha cavada e mui devota, e é tal que aqueles que a vêem, parece-lhes que vêem portal do paraíso.
A versão do Boosco é, por vezes, tão literal, que o confronto com o original latino permite esclarecer dúvidas de interpretação ou eliminar lapsos gráficos. Comparem-se, por exemplo, os seguintes lanços do De vita solitaria com os correspondentes do Boosco:
I, 7, 4, p. 56: optimo quisque ingenio totum se in cognitione et in scientia collocaret; cap. 46, fl. 26 a, n. 338, t. 1 1 — 12, p. 117: qualquer homem que houvesse boõ engenho alogaria si meesmo todo em conhocimento e em ciência.
I, 2, 1, p. 22: telam negotii orditur, por onde se conclui que são negócios urdidos como teia os negócios ateados do cap. 17, fl. 11 b, n. 138, l. 13-14, p. 48.
I, 2, 2, p. 23: turpibus latebris clientium suorum se furatur adspectibus; cap. 19, fl. 12 a, n. 147, l. 12-13, p. 51: escondendo-se deles temporemente. (O turpibus de Petrarca impõe a correcção torpemente).
I, 2, 7, p, 28: v i g il e m sobrietatem implorat; cap. 26, (fl. 14 d, n. 179, l. 8, p. 60: que lhe dê temperança vigravil, (vocábulo que, à vista do latim vigilem , se deverá identificar com o português vigilante).
I, 2, 9, p. 29: sollicitatus litteris, interpellatus nuntiis, (lanço que torna compreensível o texto do cap. 28, fl. 15 b, n. 185, l. 9-11, p. 66: cuidoso com cartas que lhe enviarom e chamarom per messegeiros).
II, 1, 11, p. 85: quidquid consules deliberant; cap. 84, fl. 41 d, n. 495, l. 2, p. 190: qualquer cousa que os cônsules livram (ou seja, deliberam).
II, 1, 12, p. 86: secretum horti an gulum pro solitudine habuit; cap. 85, fl. 42 a, n. 498, l. 14-15, p. 191: apartastes-vos em quanto de uu horto (isto é, em canto, ou ângulo);
II, 2, 3, p. 90: mortem ut ingressum vitae et labo-ris sui praemium amabat; cap. 88, fl. 43 d, n. 511, l. 18-19, p. 199: assi como entrada de vila e galardom de seu trabalho (lapso manifesto, por “entrada de vida” ).
II, 7, p. 121: ad v erb osam Graeciae philosophiam et deliciosam mollitiem transfugisset; cap. 96, fl. 48 b, n. 547, l. 20-21, p. 220: fuge-se pera a soombrosa filosofia de Grécia. (Será temerário ler: “verbosa filosofia”?).
II, 8, 2, p. 128: vacuum Tibur aut imbelle Tarentum; cap. 99, fl. 49 d, n. 559, l, 5, p. 227: o ermo de Nubelle Tarentum. (Nosso compilador não procurou verter o adjectivo imbelle , em lanço transcrito de Horácio. Epíst, I, 7, 45, e apenas tresleu nu~ a sílaba i m~).
II, 2, 1, p. 97: horridum habitaculum; cap. 86, fl. 42 c, n. 501, l. 24, p. 194: morada espantosa e mui espessa. (Afigura-se recomendável a leitura áspera),