Calasso (NCH) – Odisseu e Palamedes

Entre os gregos, Sócrates não foi o primeiro a ser morto porque era um justo. Durante a guerra de Tróia fora precedido por Palamedes, que não era ainda um justo mas um sábio. Os dez anos diante de Tróia foram ocupados só parcialmente pelas lutas na poeira e pelo choque das armas. Para os guerreiros, mais do que o medo foi o tédio a companhia constante. Numa estúpida planície asiática ergueram as barracas e observavam o horizonte. Não havia mulheres e até os amores entre homens podiam cansar. Por muitos anos, tiveram uma única ajuda preciosa: um homem como eles, um guerreiro, Palamedes, lhes ensinara a jogar dados, damas, astrágalos. Com o olhar fixo naqueles pequenos objetos rolantes, naquelas mesas com quadrados, o tempo passava. Atribuíam-se a Palamedes outras invenções: algumas letras do alfabeto, a duração dos meses, os faróis. Para os soldados anônimos era o inventor do jogo, de um encanto imóvel e interminável. Quanto ao resto, Palamedes era um príncipe como tantos outros. Chamava a atenção apenas por não usar barba. Mas havia alguém poderoso que o odiava: Odisseu.

Em Itaca, um dia, quando fingia ser louco para não ter de enfrentar Tróia, Odisseu viu Agamenon, Menelau e Palamedes, que vinham ao seu encontro, nos campos. Continuou a lavrar. Lançava mancheias de sal nos sulcos, havia atrelado um asno e um boi. Jogava o mar que ignora a ceifa no côncavo da terra fecunda, ele que um dia, depois de ter visto todos os lugares, acabaria, com sua pele salgada, no lugar em que as pessoas não conhecem o mar. Mas então era cedo ainda para que Odisseu soubesse que estava representando a si mesmo. Na cabeça, para acrescentar a insolência à ficção, pusera um chapéu com ponta: de Ca-biro, de iniciado. Somente um outro iniciado podería entender o seu jogo. Palamedes o observou. Depois, imprevistamente, arrancou o menino Telêmaco dos braços de Penélope e o atirou no sulco, diante do arado. Aí Odisseu parou. Fora vencido. Palamedes obrigara Odisseu a tocar o limite da simulação. Não havia nada que Odisseu detestasse tanto. Embora sabendo que assim não podia ser, a simulação não devia ter limites. Esse era o seu segredo, que o destacava da grande idiotice de todos os Áiacos. Simular era como planar do alto, acima de tudo, dominando com o olho, sem ser jamais dominado por outro olho, colocado em posição superior. Palamedes foi esse outro olho.

Odisseu silenciou e o seguiu. Encerrava no peito um ódio que nenhum inimigo conseguiría provocar. Durante anos combateram lado a lado. Em relação a Odisseu, Palamedes era “mais ágil no pensamento e menos capaz de servir a si próprio”. Suas invenções, que encantavam os soldados, não serviam para nada. Obedeciam à força da abstração e, ao mesmo tempo, repetiam o andamento da natureza. Palamedes o sabia. No santuário de Tique, em Argos, dedicou os dados que inventara. Tique era então uma divindade pouco frequentada. Mas um dia todos acabariam reconhecendo nela a imagem mais aproximada da natureza. O que acontece é um contínuo encontro de dados lançados. Esta imagem fixou-se um dia nos pensamentos e nunca foi superada. Diante de Tróia, Palamedes era o único que a reconhecera em sua completude. Por isso Odisseu sentia ódio por ele, estava demasiado próximo para poder suportá-lo. Sua inteligência tinha necessidade de solidão e distância dos outros. Não podia admitir uma cumplicidade não desejada.

Quando se tratou de encontrar Aquiles para atraí-lo a Tróia, Odisseu pensou logo no artifício com que Palamedes o desmascarara. Apresentou-se em Sciro disfarçado de comerciante e introduziu-se nos apartamentos das mulheres. Levava um fardo de mercadorias preciosas. Estendeu-as no chão. Mãos de donzelas logo começaram a examinar os tecidos, sopesando os colares. Mas no monte havia também um escudo e uma lança. E uma jovem de cabelos vermelhos agarrou-os rapidamente, como se tivesse estado sempre em contato com eles. Era Aquiles. Odisseu sabia que naquele momento, aplicando a acuidade de Palamedes, vencera a guerra. Conquistado Aquiles, Tróia já caíra. Faltava vingar-se de Palamedes.

Refletiu durante anos. E no final escolheu o engano que era simultaneamente o mais vil, o mais seguro e o mais filosófico. Ao desmascarar Odisseu em sua falsa loucura, Palamedes demonstrara a existência de uma verdade sob a simulação. Uma verdade do gesto. Odisseu contestou demonstrando o oposto: que o gesto mais verdadeiro podia ser considerado uma perfeita simulação. Pegou um prisioneiro troiano e lhe deu uma falsa carta de Príamo, para ser entregue a Palamedes. Na carta falava-se de ouro para um acordo entre eles. Depois matou o prisioneiro troiano e deixou que a carta fosse encontrada, como por acaso. Entretanto escondera ouro sob a cama de Palamedes. Quando a carta foi descoberta, e Palamedes se declarou inocente, Odisseu sugeriu que olhassem debaixo do leito dele. Então Palamedes foi unanimemente condenado pelos companheiros. Lapidaram-no. Cada um dos jogadores de dados lançou uma pedra sobre ele, junto com os chefe, Odisseu e Agamenon. Antes de morrer, Palamedes disse apenas que vestia luto pela verdade que morrera antes dele. Aquelas palavras eram a sua resposta a Odisseu. O inimigo de Palamedes demonstrara que uma total concórdia entre o mundo e a mente podia ser a própria falsidade. Todos tinham condenado Palamedes com sincera indignação. Todos tinham visto ouro sob a cama dele. O falso era mais coerente do que o verdadeiro. Odisseu voltou a sentir-se sozinho, no embriagante planar da inteligência.

(CalassoNCH)