Excertos de “Místicos Portugueses do Século XVI”, Dalila L. Pereira da Costa. Lello & Irmão, 1986.
E será ainda a mesma espiritualidade franciscana, a que informará a obra de Gil Vicente, e a unirá também a esses poetas. Em toda a sua mensagem, avultará esse mesmo cântico de louvor à natureza, essa íntima união com ela, a devoção à Virgem, ao Menino, a Cristo Crucificado, o ideal de soledade e contemplação, o louvor da pobreza e humildade, a refutação de qualquer saber puramente humano, de ciência, escolástica ou erudição, «…a pobreza / Actual e espiritual / He o toque principal / Da celestial riqueza» (Auto da Fé).
Da sua união com a Ordem franciscana e ainda do prestígio e autoridade que dentro dela usufruía o poeta áulico, testemunhará esse ideal transmitido na sua obra, assim como o lugar Ocupado junto da Rainha D. Leonor; e ainda e sobretudo, o facto altamente revelador da fala que proferiu em Santarém aos monges franciscanos: «E juntos estes padres a meu rogo na crasta de S. Francisco desta villa», logo após o tremor de terra de 20 de Janeiro de 1531; fala que nela incluía como uma mais do que rectificação, imãs aidmoestação a todo o caracter de terror e falsa ideologia impressa no sermonário desses monges feito ao povo logo após esse acontecimento; e em que toldo o mal, então enviado aos homens, era dado como manifestação da ira de Deus, causada pelos muitos pecados que em Portugal se faziam; e não curso natural; e ainda, ameaçando que outro terremoto maior, estaria já a caminho. «Concruo, virtuosos padres, sob vossa emenda, que não é de prudência dizerem-se taes cousas pubricamente, nem menos serviço de Deus; por que pregar não hade ser praguejar.» Será esta fala que constitui o conteúdo da carta então enviada a el-Rei D. João III, por Gil Vicente, dando conta do facto. Agora para nós, ela constitui dos documentos mais valiosas e ricas para o conhecimento do seu pensamento, assim como da autoridade que gozava dentro da Ordem de S. Francisco e na Corte, e de maneira geral na sociedade de então: autoridade de mestre do espírito. «E porque todo mie louvarão e concederão ser muito bem apontado (…) e logo ao sábado seguinte seguirão todolos pregadores esta minha tensão.» Será ainda dentro desta autoridade detida, na qual devemos ler a obra de poeta áulico. Ao clero de seu país, à corte e nobreza, o poeta surgia intimamente integrado, e simultaneamente integrando, seu povo, na mais funda essência e tradição ancestral, como sabedoria portuguesa: e será desta que exaure toda sua mensagem a transmitir. E ainda, mensagem que se fará dentro do esquema ou ideal do mais puro franciscanismo. Esta sua posição e autoridade, surgindo unidas à figura e acção da Rainha D. Leonor: ambos, o poeta áulico e a Rainha Velha, sendo como dos mais altos mensageiros e vivificadores da herança de S. Francisco entre os homens de seu tempo. A Rainha, viveu os últimos anos de sua vida no hábito de Santa Clara, fundou junto de seu paço de Xabregas o Mosteiro Clarista da Madre de Deus, servindo-o, pelo seu próprio trabalho humilde, e dotando-o com obras de arte preciosas; Seu próprio retrato figurando com certeza no painel de S. Francisco e Santa Clara, do mesmo Mosteiro; e realizando no seu reino uma das obras mais patentes de fraternidade, ao fundar as Misericórdias. «Esta virtuosa católica Rainha, institui a Confraria da Misericórdia nestes Reinos» (Damião de Góis, Crônica do Felicíssimo Rei Dom Manuel); assim como numerosas Albergarias e Merceeiras. Foi (também a Rainha, pela nova arte da impressão, que divulgou entre os portugueses obras que, pelo seu caracter místico, como Boosco Deleytoso (1515), Vita Christi (1495), espalhariam essa mensagem de vida contemplativa e ascética, tão cara então aos portugueses; assim como a divulgação da Bíblia em vulgar, e Actos dos Apóstolos (1505), dariam esse regresso ao ensinamento e vivência do Evangelho, tão cara aos franciscanos. A obra deste perclaro espírito, surgindo por sua vez intimamente ligada àquela do poeta e dramaturgo da conte. Notemos que são alguns dos seus Autos mais marcados por esse caracter contemplativo e de devoção particularmente franciscana, os que surgem dedicados à Rainha, ou realizados a seu pedido. O Auto da Alma «foi feito à muito devota Rainha Dona Leonor»; o Auto de S. Martinho «foi representado à anui caridosa e devota Senhora a Rainha D. Lianor»; o Sermão pregado em Abrantes foi «feito à virtuosíssima Rainha D. Leonor»; e a seu pedido, o Auto de Sibila Cassandra, Auto Pastoril Castelhano, Auto dos Reis Magos: segundo se lê nas suas respectivas rubricas.
D. Leonor surge na sua época como integrada na espiritualidade franciscana, e nela actuando militante-mente por suas obras de misericórdia e divulgação da cultura cristã. Espírito contemplativo desta sua feição, e dessa sua acção prática, falará Valentim Fernandes: «A qual vida contemplativa vossa excelentissima senhora se deu tanto que ata oje do vosso estado nom se achou outra alguma, pospoendo todos os negócios mundanos, segundo o seraphico padre sam Francisco (…) E porque a vida activa, como disse, he perfectamente obras de misericórdia, quis vossa liberalissima benágnidade proveer os vossos naturais de mantimemto espiritual, fazendo grande obra de misericórdia, mandando por mim empremir os livros de Vita Christi…»
Em toda a obra de Gil Vicente, perpassará esse mesmo ideal franciscano, de união com a natureza, toda ela descrita num realismo estreme, íntima e amorosamente e de experiência de união vivida e cantada em termos de exultação como raro atingido na cultura portuguesa: tal os do Triunfo do Inverno, Auto dos Quatro Tempos, Auto da História de Deus, ou ainda, Auto da Lusitânia. Louvor ao Menino e à Virgem, em termos de ternura e beleza supremas, no Auto Pastoril Castelhano, Auto da Sibila Cassandra, Auto dos Quatro Tempos. Louvor à vida contemplativa e eremítica, terão nesse Auto Pastoril Castelhano e Auto dos Reis Magos e ainda Amadis de Gaula, seus maiores exemplos. A simplicidade e pobreza espiritual cara ao franciscanismo, terão também seu louvor no Auto da Barca do Inferno, na figura do Parvo, como aquele que se anula e se nega na sua pessoa ou em qualquer de suas qualidades: «Não sou ninguém», como responderá à pergunta do Anjo: «Quem és tu?» Assim como toda a rejeição do saber escolástico e erudito, própria do franciscanismo, virá expressada no Auto de Mofina Mendes, na pregação do Frade; a essa presunção opondo a contemplação e devoção, os mistérios da Virgem, com suas quatro Damas: Pobreza, Humildade, Fé e Prudência.
Serão exemplos ímpares na cultura portuguesa, a canção de Maio, mensageiro do Sol, como formas desse amor franciscano pela natureza:
«Este é o Maio e floresça,
Este é o Maio das rosas,
Este é o Maio das formosas» (Auto da Lusitânia);
ou o Argumento da Figura 1 do Triunfo do Inverno,
«Soy portero de los vientos
Pastor de Ias tempestades,
Ayo de las frialdades,
Ira de los elementos.»
Como forma do amor à Virgem e ao Menino, o Hino do Auto Pastoril Português:
Ó gloriosa Senhora do mundo,
Exclesa princeza do ceo e da terra,
Fermosa batalha de paz e de guerra,
Da santa Trindade secreto profundo!
Ou o louvor que à Virgem dedica a Humildade; no Auto de Mofina Mendes:
Balsamo mui oleroso
Pulchra ut lilium gracioso,
Das flores mais linda flor,
Dos campos o mais fermoso:
Chama-lhe plantatio rosa
Nova oliva speciosa,
Mansa columba Noe
Estrela a mais luminosa.
E o que lhe dedica Esaías:
«Las riberas y verduras
Y frescuras
Pregonan su hermosura
La nieve su blancura
Limpia y pura
Más que todas criaturas:
Lirios, flores y rosas
Muy preciosas
Procuram de semejalla» (Auto de Sibila Cassandra).
Ou então o louvor ao Menino:
«Aquel niño es eterna!,
Invisible y visible;
Es mortal y imortal,
Mobible y immobible» (Auto Pastoril Castelhano).
Ou junto do presépio, o vilancete cantado no Auto dos Quatro Tempos, pelos Quatro Tempos, Serafins, Anjos e Arcanjos:
«A ti dino de adorar,
A ti nuestro Dios, toamos,
A ti, señor confessamos,
Sanctus, sanctus, sem césar.»
E depois por Júpiter:
Todas van hoy adorar
Al criador poderoso,
Que es nascido;
Las aves cun su cantar,
Y el ganado selvinoso
Con bramidos
Los selvaginos bestiales
Con olicorne pondero
Dan loores.
E será no Auto da História de Deus, que a Paixão de Cristo atinge na cultura portuguesa das suas mais altas expressões, nesse realismo e dramatismo direto, livre de qualquer retórica, caro ao franciscanismo:
E assi entregar a minha cabeça
A cruel c’roa, porque ela padeça
Com tanto de sangue, que quem me olhar
Que não me conheça.
Quero ir levar estes meus cabelos
Onde sejão feitos duzentos pedaços;
Quero ir pregar estes pés e meus braços
Onde os sinta, e não possa vê-los:
E o dedicado
Triste meu peito, que seja pisado
Com couces irosos, e minhas queixadas
E dentes, quebrados com mil bofetadas.