Dostoiévski (Berdiaeff)

Berdiaeff, L’esprit de Dostoïevski. (1945) [1974] 

Dostoiévski não foi apenas um grande artista, foi um grande pensador e um grande visionário: um dialético de gênio também, e o maior metafísico da Rússia. As ideias desempenham um papel preponderante em sua obra e sua admirável dialética ocupa um lugar igual ao de sua extraordinária psicologia. Essa dialética participa da própria natureza de sua arte: é através da arte que Dostoiévski penetra até seus fundamentos o mundo das ideias, e o mundo das ideias, por sua vez, impregna sua arte. Pois as ideias vivem nele uma vida orgânica, têm um destino vivo e inevitável. Existência no mais alto grau dinâmico. Nada aqui é estático: nem parada, nem esclerose. Dostoiévski estudou exclusivamente o processo vivo desse dinamismo, levantou em sua obra as ideias como turbilhões de fogo, envolveu-as em uma atmosfera inflamada. Os conceitos frios não o interessam. Ele carrega em si um sopro do espírito de Heráclito: tudo é fogo e movimento, oposição e combate. As ideias são ondas de chama, nunca categorias fixas. Toda ideia, em Dostoiévski, está ligada ao destino do homem, ao destino do mundo, ao destino de Deus. As ideias determinam esses destinos. Ontológicas, ou seja, encerrando em si a própria substância do ser, elas mantêm escondida em estado latente a energia destrutiva da dinamite. Dostoiévski nos mostra que sua explosão espalha ruínas ao redor. Mas elas também possuem a energia capaz de trazer a vida de volta. O mundo das ideias, tal como Dostoiévski o concebe, é inteiramente original, e difere totalmente do de Platão. As ideias não são para ele os protótipos do Ser, entidades primárias, muito menos normas, mas são o destino do ser vivo, a energia de fogo que o conduz. Em uma medida tão grande quanto Platão, Dostoiévski reconhece às ideias um valor próprio: apesar da moda atual que tende a negar esse valor autônomo das ideias, e a desconhecer o preço delas em qualquer escritor, não se pode, portanto, compreender Dostoiévski — não se poderia sequer abordá-lo — sem mergulhar completamente no universo das ideias, nele tão vasto e tão original. A obra de Dostoiévski é um verdadeiro Banquete do Pensamento. E aqueles que se recusam a participar dele, e cujas reflexões céticas negam a eficácia de todo pensamento, condenam-se a uma existência espiritualmente reduzida e sombria.

Dostoiévski descobriu mundos novos, mundos em movimento, pelos quais apenas são inteligíveis os destinos humanos. Não se pode ter acesso a eles enquanto se limita a pesquisa ao aspecto formal da arte ou à psicologia. É esse universo que quis penetrar até sua profundidade para captar o que chamarei de concepção de mundo de Dostoiévski. O que é exatamente a concepção de mundo de um escritor, senão sua penetração totalmente intuitiva na essência mais íntima desse mundo, tudo o que o criador descobre no universo e na vida: não se trata aqui de um sistema abstrato, tal como não se poderia pedir, pelo menos, a um artista, mas, em Dostoiévski, de uma intuição genial do destino humano e universal. Intuição artística, mas não exclusivamente: intuição intelectual também, filosófica, verdadeiramente uma gnose. Em uma acepção particular da palavra, Dostoiévski foi um gnóstico. Sua obra é um conhecimento, uma ciência do espírito. Ele teve do mundo uma concepção no mais alto grau dinâmica, e é como tal que tentaremos apreendê-la. Se considerarmos as coisas do ponto de vista dinâmico, não há mais contradição em sua obra. Ele verifica o princípio das coincidentia oppositorum. Na leitura de Dostoiévski, colhe-se um saber novo. E é esse ensinamento que procurarei desvendar em sua integridade.

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