Evola Andrógino

Julius Evola — A Metafísica do Sexo
O Mito do Andrógino
A primeira teoria diz respeito ao mito do andrógino. Para este, como para quase todos os mitos inseridos na filosofia de Platão, deverá supor-se uma origem iniciática e relacionada com os Mistérios. O mesmo tema circula, efetivamente, pelos subterrâneos duma literatura muito variada, desde os antigos meios misteriosóficos e gnósticos até aos autores da Idade Média e dos primeiros séculos da própria era moderna. Fora do nosso continente poderão também encontrar-se temas idênticos.

Segundo Platão1 existiu uma raça primordial «cuja essência se encontra agora extinta», raça de seres que englobavam os dois princípios masculino e feminino. Os componentes dessa raça andrógina «tinham uma força e uma audácia extraordinárias, acalentando no seio projetos de um extremo orgulho, como, por exemplo, a ideia de atacar os deuses». Atribui-se igualmente a essa raça a lenda referida por Homero, a propósito de Oto e Efialto, da tentativa de «escalar os céus para atacar os deuses». Este tema é o mesmo de hybris dos Titãs e dos Gigantes; é o tema de Prometeu e aquele que se pode encontrar em tantos outros mitos — até, em certa medida, no mito bíblico do Éden e do Adão, porquanto aí figura também a promessa de «se tornarem idênticos aos deuses» (Gênesis, III, 5).

Na obra de Platão os deuses não fulminam os seres andróginos tal como fizeram aos gigantes, mas paralisam o seu poder separando-os em duas metades. Daí a nascença de seres de sexo distinto, portadores sob a forma de homem ou de mulher de um ou do outro sexo; seres estes em que persiste, contudo, recordação do estado anterior que lhes desperta o impulso de reconstituírem a unidade primordial. É neste impulso que, segundo Platão, deverá encontrar-se o sentido final, metafísico e eterno do eros. «Desde essas épocas recuadas, o amor impele os seres humanos uns para os outros, é inato na natureza humana e tende a restabelecer a natureza primeiro ao tentar unir num só dois seres distintos e assim restaurar a natureza humana (Ibid., 191-cd).» À parte a participação comum dos amantes no prazer sexual, a alma de cada um «tende para qualquer coisa de diferente, que não consegue exprimir mas que se sente e revela misteriosamente» (Ibid., 192 c-d). Trata-se como que de uma prova a posteriori. Platão faz Efaisto perguntar aos amantes «O que desejais? Não será uma fusão perfeita um no outro, de maneira a jamais vos separardes nem de dia nem de noite? Se é esse o vosso desejo poderei fundir-vos e soldar-vos pelo fogo num único ser, de tal modo que de dois que éreis ficareis reduzidos a um só e vivereis unidos um ao outro enquanto viverdes, e quando morrerdes, em lugar de dois sereis um, além, no Ade, ligados a um destino comum. Pois bem, vede se é isto que desejais e se vos satisfaz.» Platão diz-nos a este propósito, «bem sabemos que não haveria nenhum que recusasse ou desejasse outra coisa; cada um pensaria ter finalmente ouvido exprimir aquilo que, há tanto tempo, era seu desejo: unir-se, fundir-se com o ser amado, para de dois seres distintos formar uma só natureza. Ora será preciso procurar o móbil desta aspiração no fato de ser precisamente esta a nossa natureza primitiva, em que formávamos uma unidade ainda completa; é precisamente o desejo ardente de obter esta unidade que toma o nome de amor.» (Ibid., 192 d-e). É quase como um símbolo, «a união (das duas partes) de uma à outra no desejo de se penetrarem» (Ibid., 187 a).

Neste conjunto os elementos acessórios, figurativos e «míticos», no sentido negativo da palavra, deverão ser separados do conceito essencial. Assim, não se deve naturalmente, e em primeiro lugar, pensar nos seres primordiais que Platão, à maneira de uma fábula, nos descreve, até nos seus traços somáticos, como membros de uma qualquer raça pré-histórica de que quase seria possível encontrar os restos ou os fósseis. Deveremos, ao contrário, referir-nos a um estado, a uma condição espiritual das origens, não tanto no sentido histórico como no quadro de uma antologia, de uma doutrina dos estudos múltiplos do ser. Se abstrairmos da mitologia poderemos compreender este estado como o de um ser absoluto (não fracionado, não «dual»), como uma totalidade ou unidade pura, e, por isso mesmo, como um estado de imortalidade. Este fato é confirmado quer pela doutrina expressa através de Diotima, noutra parte de «O Banquete», quer pela desenvolvida em «Fedra», onde, e se bem que em relação com o que mais tarde se chamou «amor platônico» e com a teoria da beleza, se torna explícita a relação entre o fim supremo do eros e a imortalidade.

Como segundo elemento do mito platônico consideramos, em seguida, uma variante do tema tradicional geral da «queda». A diferenciação dos sexos corresponde à condição de um ser fraturado, pois que finito e mortal: isto é, à condição «dual» daquele que não tem a vida em si, mas num outro ser — estado que não pode ser considerado original. Assim, e relativamente a este último ponto, poderia estabelecer-se um paralelo com o próprio mito bíblico, porquanto neste a queda de Adão tem como consequência a sua exclusão da Arvore da Vida. A Bíblia refere-se igualmente ao androginato dos seres primordiais feitos à imagem de Deus («Ele criou-nos macho e fêmea» — Gênesis, 1,27) e o nome de Eva, complemento de homem, quer dizer «a Vida», «a que vive». Como veremos mais adiante, na interpretação cabalística, a separação da Mulher-Vida no andrógino está relacionada com a queda e acaba por equivaler à exclusão de Adão da Arvore da Vida para que esta «não se torne um de nós (um Deus) e não viva eternamente». Gênesis, III, 22).

No seu conjunto, o mito platônico encontra-se pois entre aqueles que aludem à passagem da unidade para a dualidade, do ser à privação do ser e da vida absoluta. O seu caráter particular e importância encontram-se, todavia, na sua aplicação, ou seja, na dualidade dos sexos para indicar o sentido secreto e o objetivo final do eros. Já em Upanishad se podia ler, como referência especial numa conhecida sequência relativa àquilo que se procura verdadeiramente através de um ou outro objetivo aparente e ilusório da vida de todos os dias: «Não é pela mulher (em si) que a mulher é desejada pelo homem, mas sim pelo âtmâ (pelo princípio “tudo luz, tudo imortalidade”)»2. A imagem é a mesma. No seu aspecto mais profundo o eros incorpora um impulso tendente a vencer as consequências da queda, a sair do mundo «cessante» da dualidade, com o fim de restabelecer o estado primordial e ultrapassar a condição de uma existencialidade «dual», fraturada e condicionada pelo «outro». É este o seu sentido absoluto; é este o mistério que impele o homem para a mulher, elementarmente, antes de todos os condicionalismos, já referidos, do amor humano nas suas infinitas variedades relativas a seres que nem sempre são homens ou mulheres puros, mas quase todos subprodutos de uns e outras. Esta é, pois, a chave de toda a metafísica do sexo: «Através da díade para a unidade.» Deve reconhecer-se no amor sexual a forma mais universal que leva os homens a procurarem obscuramente destruir por momentos a dualidade, ultrapassando existencialmente a fronteira entre o Eu e o não-Eu, entre Eu e o Tu, a carne e o sexo que servem de instrumentos para uma aproximação estática da «união». Embora sem fundamento, a etimologia da palavra «amor» dada por um «Fiel do Amor» medieval não é menos significativa: «A partícula a significa «sem»; mor (mors) significa morte: reunindo as duas teremos «sem morte», isto é, a imortalidade»3.





  1. «O Banquete», XIV, XV, e em particular 189-c e 190-c. 

  2. Bhradhâranyaka — upanishad, II, IV, 5. 

  3. A. RICOLFI, Studi sui Fideli d’Amore, Milão, 1933, v. I, pág. 63. 

Julius Evola