Fenomenologia transcendental (Abellio)

(Abellio1984)

Esta referência à fenomenologia transcendental não surgiu aqui por acaso. Foi de fato o projeto fundamental de Husserl encontrar um fundamento radical para a ciência. [36] Ora, aqui, nosso único fundamento, até agora, consiste no conjunto dos textos tradicionais. Mas estes textos tão obscuros, sobre o que eles próprios se fundamentam? É claro que este problema está intimamente ligado ao de um sentido “a vir”, que também precisa ser elucidado. Podemos certamente questionar (e no fundo é o mesmo problema) sobre a “natureza” da inspiração que permitiu escrevê-los. Supondo que se trate realmente de inspiração e não de pura e simples mistificação, os autores destes textos a receberam ao lê-la ex nihilo como nós sentimos a nossa? Mas o número não implica consigo, num ternário essencial a toda gnose, a existência de um número e de um numerador? Em outras palavras, a revelação pode prescindir de um sujeito revelador e de um objeto revelado? Podemos propor para este revelador muitas designações. Seja ele designado como ser pessoal ou impessoal, transcendente ou imanente, ou ainda Ser supremo ou Ser absoluto, Deus, Deidade, Inteligência universal ou Grande Arquiteto do universo, pouco importa aqui. Por outro lado, fazer depender o revelado do que alguns chamam de “arquivos” deste mesmo universo, Yaksha dos hindus, o mundo astral e suas “hierarquias” ou o além-mundo, não nos esclarece mais. Se nos ativermos à nossa exigência fundamental de racionalidade, seremos sempre conduzidos a uma regressão ao infinito na intersubjetividade absoluta onde o problema do fundamento permanecerá sempre em suspenso. É aqui, em seu perpétuo retorno ao começo, que a fenomenologia transcendental intervém.

Qual é, antes de tudo, este tipo de evidência que qualificamos de indiscutível e que corresponde às intuições fulgurantes de que falamos? Dissemos que tais evidências aparentemente não se apoiam em nada e nos vêm, por assim dizer, “sem razão”, numa espontaneidade que parece um tanto suspeita. Ora, paradoxalmente, é esta ausência de fundamentos e de razões que lhes confere valor. As evidências ordinárias, de fato, correspondem seja à crença comum em pressupostos solidamente implantados em nós, seja a consequências destes pressupostos obtidas por meio de regras lógicas ou, mais geralmente, discursivas, elas mesmas tidas, sem discussão, como plenamente [37] válidas. Assim, é comumente tido como evidente, por exemplo, que o caminho mais curto entre dois pontos é a linha reta, o que é entretanto falso na Terra onde este caminho mais curto, se a consideramos esférica, é um arco de grande círculo. O mesmo ocorre, apesar do consenso geral, com a própria existência do mundo: se esta existência é certamente evidente, esta evidência não é de modo algum indiscutível pois, como salienta Husserl, todo o conjunto de experiências que, para nós, se efetua no seio de um mundo já dado “pode revelar-se simples aparência e não passar de um sonho coerente”1.

  1. Edmond Husserl, Meditações cartesianas, trad. Peiffer e Lévinas, Paris, Vrin, 1966, p. 15.[]
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