A realização efetiva dos múltiplos estados de ser refere-se à concepção do que várias doutrinas tradicionais, e em particular o esoterismo islâmico, chamam de “Homem Universal”1, uma concepção que, como dissemos em outro lugar, estabelece a analogia constitutiva da manifestação universal e sua modalidade humana individual, ou, para usar a linguagem do hermetismo ocidental, do “macrocosmo” e do “microcosmo”. Essa noção pode, ademais, ser encarada em diferentes graus e com várias extensões, permanecendo a mesma analogia válida em todos esses casos2: assim, pode ser restrita à própria humanidade, encarada seja em sua natureza específica ou mesmo em sua organização social, pois é nessa analogia que se baseia essencialmente a instituição das castas, entre outras aplicações. Em outro nível, já mais abrangente, a mesma noção pode abarcar o domínio da existência correspondente à totalidade de um determinado estado de ser, seja ele qual for; mas esse significado, especialmente se diz respeito ao estado humano, mesmo quando tomado no desenvolvimento integral de todas as suas modalidades, ou a outro estado individual, ainda é propriamente apenas “cosmológico”, e o que devemos essencialmente considerar aqui é uma transposição metafísica da noção de homem individual, uma transposição que deve ser realizada no domínio extraindividual e supraindividual. Nesse sentido, e se nos referirmos ao que dissemos anteriormente, o conceito de “Homem Universal” se aplicará, em primeiro lugar, e mais geralmente, a todos os estados de manifestação; mas ele pode se tornar ainda mais universal, na plenitude do verdadeiro significado da palavra, estendendo-o também a estados de não-manifestação, ou seja, à realização completa e perfeita do Ser total, entendido no sentido mais elevado que indicamos anteriormente, e sempre com a ressalva de que o próprio termo “ser” só pode ser tomado em um sentido puramente analógico.
[…]Acrescentaríamos uma observação que é da maior importância: é que o “Homem Universal” existe apenas virtualmente, e de certa forma negativamente, à maneira de um arquétipo ideal, enquanto a realização efetiva do ser total não lhe tiver dado existência real e positiva; e isso é verdadeiro para qualquer ser, seja ele qual for, considerado como efetuando ou tendo que efetuar tal realização3. Além disso, para evitar qualquer mal-entendido, digamos que essa maneira de falar, que apresenta como sucessivo o que é essencialmente simultâneo em si mesmo, é válida apenas na medida em que nos colocamos do ponto de vista especial de um estado de manifestação do ser, sendo esse estado tomado como o ponto de partida da realização. Por outro lado, é óbvio que expressões como “existência negativa” e “existência positiva” não devem ser tomadas literalmente, já que a própria noção de “existência” se aplica adequadamente apenas em certa medida e até certo ponto; mas as imperfeições inerentes à linguagem, pelo próprio fato de estar vinculada às condições do estado humano e, ainda mais particularmente, à sua modalidade corpórea e terrena, muitas vezes exigem o uso, com algumas precauções, de “imagens verbais” desse tipo, sem as quais seria completamente impossível fazer-se entender, especialmente em línguas tão inadequadas para a expressão de verdades metafísicas como são as línguas ocidentais.
O “Homem Universal” (em árabe, El-Insânul-kâmil) é o Adam Qadmôn da Cabala hebraica; ele também é o “Rei” (Wang) da tradição do Extremo Oriente (Tao-te-king, XXV). — No esoterismo islâmico, há um grande número de tratados de diferentes autores sobre El-Insânul-kâmil. Mencionaremos aqui apenas os de Mohyiddin ibn Arabi e Abdul-Karîm El-Jîli como sendo de particular importância do nosso ponto de vista. ↩
Uma observação semelhante poderia ser feita sobre a teoria dos ciclos, que é basicamente apenas outra expressão de estados de existência: todo ciclo secundário reproduz, por assim dizer, em uma escala menor, fases correspondentes às do ciclo mais extenso ao qual está subordinado. ↩
Em certo sentido, esses dois estados negativo e positivo do “Homem Universal” correspondem, respectivamente, na linguagem da tradição judaico-cristã, ao estado anterior à “queda” e ao estado posterior à “redenção”; são, portanto, desse ponto de vista, os dois Adão de que fala São Paulo (Primeira Epístola aos Coríntios, XV), que ao mesmo tempo mostra a relação do “Homem Universal” com o Logos (cf. Autoridade Espiritual e Poder Temporal, cap. VIII). ↩