Gurdjieff (RBN): Ato Teatral

Gurdjieff: Relatos de Belzebu a seu neto (p. 482 seg.)

Assim, pois, em Babilônia, os membros eruditos do clube dos Adeptos do Legominismo pertencentes a esse grupo, registravam da seguinte maneira os devidos conhecimentos em movimentos e ações dos participantes do mistério:

Se, por exemplo, um participante do mistério, tendo suscitado num ou noutro de seus cérebros, segundo associações de conformidade com as leis, tal impressão nova correspondente a seu papel, devia reagir com tal movimento ou tal manifestação definida, executava esse movimento ou se entregava a essa manifestação, não como deveria fazer de acordo com a Lei de Sete, mas “de maneira diferente”, e era nessas “maneiras diferentes” que os eruditos desse grupo inseriam, de determinado modo, o que queriam transmitir às gerações futuras.

E agora, meu filho, para que tenha uma ideia concreta das demonstrações a que eu gostava de assistir todo sábado para descansar da intensa atividade que então desenvolvia, vou lhe contar como esses eruditos misteristas imitavam, diante dos outros membros eruditos do clube dos Adeptos do Legomonismo, todo o tipo de emoções esserais ou de manifestações que se desenrolavam segundo o curso das associações e entre as quais se escolhiam elementos para os mistérios futuros.

Para essas demonstrações, fora montado, numa das grandes salas do clube, um palco que chamaram então “refletor-de-realidade”; os seres das épocas posteriores aos quais foram, por acaso, transmitidas informações relativas a esses eruditos misteristas babilônicos e que se puseram a imitá-los e a fazer supostamente a mesma coisa, deram a esse tipo de construção, e dão ainda hoje, o nome de “tablado”.

Pois bem, nesse “refletor-de-realidade” ou “tablado” apareciam sempre, no início da sessão, dois participantes; um geralmente começava por ficar certo tempo de pé, imóvel, como se escutasse o seu próprio estado “dartkhelklustniano” ou, como ainda se diz às vezes, o estado geral de sua própria “emoção psíquica associativa”.

Enquanto assim escutava a si próprio, sua razão percebia que a soma de suas emoções associativas tomara, por exemplo, a forma de um desejo irresistível de dar uma bofetada nesse ente, cuja simples visão servia sempre de ponto de partida para associações de determinadas séries de impressões já fixadas nele e que sempre provocavam em seu psiquismo geral emoções desagradáveis, ofensivas para seu próprio sentimento de “consciência de si”.

Vamos supor que tais emoções desagradáveis sempre tenham ocorrido nele à vista do que então se chamava um “trodokhakhuna”, espécie de funcionário que os seres contemporâneos chamam “policial”.

Ora, uma vez esclarecida sua razão sobre esse estado psíquico e essa inclinação “dartkhelklustniana”, ele se dava perfeitamente conta, ao mesmo tempo, de que, dadas as condições atuais de existência pública exterior, jamais poderia satisfazer plenamente sua inclinação; por outro lado, já tendo se aperfeiçoado em razão e reconhecendo sua sujeição ao funcionamento automático das outras partes de sua presença geral, compreendia claramente que da satisfação desse impulso dependeria o cumprimento de um dever esseral de grande alcance para as pessoas de seu círculo de relações.

Refletindo deste modo, decidia então satisfazer essa imperiosa inclinação da melhor maneira possível e infligir a esse “trodokhakhuna” pelo menos um “sofrimento moral” que provocaria nele associações de natureza ofensiva.

Voltava-se, pois, com esta intenção, para o outro erudito que entrara com ele no tablado e, tratando-o então como um “trodokhakhuna”, dizia:

EH! você… Não sabe ainda qual é seu dever? Não vê que lá…” Nesse momento apontava o dedo na direção de outra sala do clube, onde estava o resto dos participantes da demonstração do dia, e prosseguia: “… que lá, digo eu, dois cidadãos, um “soldado” e um “sapateiro”, brigam na rua e perturbam a tranquilidade pública? E, enquanto isso, fica você aí nesse comodismo, imaginando ser sabe Deus quem, cobiçando as passantes, as mulheres dos honestos e dignos habitantes da cidade!

“Espere aí, seu malandro. Pelo meu chefe, o médico principal da cidade, farei que seus superiores tomem conhecimento da pouca atenção e do descuido que põe no exercício de suas funções!”

A partir de então, o erudito que falava, tendo dito por acaso que seu chefe era médico, entrava no papel de um médico, enquanto o segundo sábio entrava no papel de um “policial”; quanto aos dois outros eruditos participantes, que o “policial” trouxera da outra sala, assumiam então, respectivamente, os papéis de “sapateiro” e de “soldado”.

E estes dois últimos eruditos eram obrigados a desempenhar os papéis de “soldado” e de “sapateiro” e a se manifestarem exatamente como tais, pela simples razão de que o primeiro sábio, obedecendo a seu estado dartkhelklustniano e tendo tomado sobre si a responsabilidade do papel de médico, os designara com esses nomes.

Ora, esses três eruditos, forçados inesperadamente pelo quarto a assumir todo o tipo de percepções e manifestações conformes às leis, porém peculiares a tipos totalmente estranhos a eles, ou, como dizem seus favoritos, a desempenhar papéis “emprestados”, os de “soldado”, “sapateiro” e “policial” — começavam então a dirigir suas emoções e as manifestações reflexas que elas acarretavam, graças à propriedade esseral chamada “ikhriltatzkakra”, bem conhecida dos eruditos da época que já haviam aperfeiçoado suficientemente sua presença e estavam em condições de realizar tal propriedade.

Os entes tricêntricos só podem possuir a propriedade “ikhriltatzkakra” após terem adquirido em sua presença o que se chama “vontade egoaiturassiana”, que, por sua vez, só se pode adquirir graças aos “partkdolgdeveres esserais”, isto é, aos esforços conscientes e aos sofrimentos voluntários.

Era assim que os eruditos membros do grupo dos misteristas conseguiam desempenhar “papéis emprestados” e viver, diante dos demais eruditos membros do clube, experiências e ações reflexas interiores que ocorriam e se desenrolavam sob a direção de sua razão bem esclarecida.

Mais tarde, de comum acordo com os demais membros do clube, escolhiam, entre os impulsos esserais assim apresentados, os que melhor correspondiam a sua meta e que, conforme à lei de fluxo das associações de origem diversa, deviam ser vividos e manifestados em ações bem definidas — após o que, inseriam esses elementos selecionados nos detalhes de algum mistério.

Gurdjieff