Ibn Khaldun — Prolegômenos
Excertos da tradução de José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury, IBF, 1958
SEXTO DISCURSO PRELIMINAR
TRATANDO DOS HOMENS QUE, SEJA POR DISPOSIÇÃO INATA, SEJA POR TREINO OU DISCIPLINA, CHEGAM A PERCEBER O MUNDO INVISÍVEL; COM OBSERVAÇÕES PRELIMINARES SOBRE A NATUREZA DA REVELAÇÃO
II — DA ADIVINHAÇÃO OU AL KAHANAT
A adivinhação é também uma faculdade que pertence à alma humana. Com efeito, de tudo o que acabámos de expor resulta que a alma humana é levada, por uma disposição natural, a libertar-se da humanidade para se poder elevar a um estado superior, que é a espiritualidade. Dissemos que isso acontecia, não devido aos méritos adquiridos, como não se deve também esta faculdade nem à percepção dos sentidos, nem ao esforço da imaginação, nem a atos materiais, sejam estes palavras ou movimentos, nem tão pouco a qualquer outro meio material. Aquilo é unicamente uma operação da alma, que, em consequência de uma disposição inata, se despe da natureza humana para se vestir da dos anjos, por um instante mais rápido que um pestanejar. Sendo assim e pertencendo esta disposição realmente à alma humana, deve-se admitir, fazendo uma distinção racional, que existe no mundo uma outra classe de homens, a qual, comparada com a dos profetas, é como a imperfeição posta em confronto com seu oposto, isto é, a perfeição. Com efeito, não empregar meios para alcançar a percepção do mundo espiritual é inteiramente o oposto do ato contrário, que é empregar meios que o alcancem. Há, pois, uma grande diferença entre estes dois casos contrários. Em consequência disso, pela diferenciação dos seres e sua classificação em categorias, sabemos que este mundo contém uma classe de homens tão bem organizados por natureza que sua potência intelectual se deixa agitar sob a ação da faculdade cogitativa aliada à vontade intelectual, todas as vezes que esta potência é impulsionada pelo desejo de penetrar no mundo espiritual. Mas, muito fraca por si própria para conseguir alcançá-lo, ela recorre aos meios secundários, que pertencem, uns, ao domínio dos sentidos, e, ao domínio da imaginação, outros. Entre estes meios, nós assinalamos os corpos transparentes, os ossos de animais, os discursos cadenciados, os presságios tirados pelos augures quer das aves, quer dos quadrúpedes. Aqui, nestes casos, é a faculdade sensitiva ou é a imaginação que intervêm para auxiliar a alma na sua tentativa de se libertar do mundo sensível e lhe servem de companheiras durante sua evasão. A força (ou potência) que nesta classe de homens os leva ao grau de percepção suscetível de ser lançado por semelhantes meios, é o que se chama adivinhação. Ora, nestes homens, a alma está por sua natureza, colocada numa posição de inferioridade que não lhe permite alcançar a perfeição; ela compreende menos facilmente os universais que os particulares e prende-se a estes de preferência aos primeiros. É a razão por que a potência imaginativa existe nesta classe em toda a sua força, e, como os particulares se acham prontos e presentes na alma, a imaginação reproduz-lhes as formas e faz as vezes de um espelho em que a alma não se cansa de olhar.
O adivinho não pode atingir de uma maneira completa a percepção das coisas intelectuais, porque a revelação que recebe vem-lhe do demônio. Para alcançar o mais alto grau de inspiração de que é capaz, deve recorrer o emprego de certas fórmulas e frases que se distinguem por uma cadência e um paralelismo particular1. Recorre a este meio (rítmico e cantado) para subtrair a alma às influências dos sentidos e lhe dar bastante força para se pôr em contato imperfeito (com o mundo espiritual). Esta agitação de espírito, conjuntamente com o recurso dos outros meios extrínsecos supracitados, provocam no seu coração ideias que este órgão exprime por intermédio da língua. As palavras que então pronuncia são, umas vezes, verdadeiras, outras vezes, falsas. A razão é que o adivinho, precisando completar e preencher a insuficiência de seu natural imperfeito, serve-se de meios estranhos à sua faculdade perceptiva e que não se harmonizam com ela de modo algum. Por isso, a verdade e o erro se apresentam igualmente ao espírito do adivinho e a sua palavra não pode ser objeto de confiança e de fé. Às vezes, recorre a simples suposições e conjeturas, na esperança de encontrar, como ele diz, a verdade, mas, na realidade, para enganar os que recorrem a seu ofício.
Àqueles que, para excitar o espírito, recorrem ao emprego da cadência ou “saj” aplica-se o nome de Adivinho ou Cáhin, cujo plural é Cuhán, por ocuparem uma posição mais elevada entre os homens desta classe. O Profeta disse, ao ouvir um certo canto de guerra: “Ei-lo, o “saj” dos Adivinhos!”, indicando, pela determinação do genitivo, que o uso do “saj” é peculiar aos adivinhos. Interrogando, certa vez, a Ibn Sayiad2, e querendo dele saber, por uma declaração espontânea, qual a natureza da inspiração que recebia, este respondeu: Ora ME traz coisas verdadeiras, ora ME traz mentiras. — Então atalhou o Profeta, o que recebes é muito embrulhado! Por estas palavras, dava a entender que o profetismo tem a verdade como carácter distintivo e que a falsidade não poderia nele entrar de modo algum. Consiste efetivamente o profetismo no contato do espírito do profeta com a Companhia sublime, sem necessidade de guia para conduzi-lo e sem recurso de qualquer meio extrínseco. Ora, já que o adivinho ao exercer a adivinhação, é obrigado, por sua natural incapacidade ao uso dos meios extrínsecos fornecidos pela imaginação, meios que influem na faculdade perceptiva e se misturam às percepções que deseja atingir, resulta que ele recebe, deste lado, impressões completamente falsas (porque imaginárias), as quais portanto, não se poderiam considerar como profetismo.
Já indicamos que o grau mais alto de adivinhação alcança-se pelo uso de fórmulas cadenciadas, que é o mais ativo dos meios que a vista e o ouvido possam fornecer, e cuja simplicidade mostra a grande facilidade com que o espírito pode pôr-se em contato com o mundo espiritual e nele colher percepções, o que lhe permite sair, em certa medida, de sua impotência natural.
Pretende-se que a faculdade de adivinhação não existe mais desde que veio o Profeta. Pretende-se, mesmo, que ela tinha sido interrompida pouco antes da missão de Muhammad, devido à ação das estrelas cadentes que os anjos lançaram contra os demônios, que estavam à escuta às portas do céu, para impedi-los de saber o que lá se passava, como consta do Alcorão (Surat XV: 18). Ora, dizem, desde que as novas do céu não podem chegar ao conhecimento dos adivinhos senão por Intermédio dos demônios, a faculdade de adivinhar deixou de existir desde aquela época. Este argumento não é concludente. Os adivinhos têm estes conhecimentos não somente por intermédio dos demônios, mas também por si próprios, como já se demonstrou. Acrescentemos que o aludido versículo do Alcorão indica que os demônios foram impedidos só de recolher uma das notícias celestes: a que dizia respeito à missão do Profeta. Quanto às restantes nada impediu estes espíritos de recolhê-las. Por outro lado, a faculdade divinatória, mesmo que tivesse sido suspensa por pouco tempo antes da missão de Muhammad, poderia ter voltado mais tarde à sua atividade anterior. Isto é tanto mais provável, quanto é certo que todos os meios de se adquirir percepções do mundo espiritual perdem sua força enquanto durarem as missões proféticas; aqueles meios se apagam, então, do mesmo modo que as estrelas e os candeeiros perdem sua luz em presença do sol. Na verdade, o profetismo é o grande luminar, perante o qual os outros luminares se velam ou desaparecem.
Alguns filósofos ensinaram, relativamente à faculdade divinatória, que existia ela realmente antes da vinda do Profeta mas cessou quando dg sua chegada. Segundo eles, reproduziu-se o mesmo fato sempre que um profeta apareceu neste mundo. A manifestação profética, dizem, deve ser necessariamente precedida de uma posição de astros que motive este acontecimento. Cada vez que a posição (dos astros) é perfeita, a faculdade profética, cuja manifestação próxima ela anuncia, deve ser também perfeita. Se, nesta posição, houver certa imperfeição, o mesmo defeito deve-se achar na natureza da faculdade que resulta desta posição. Reconhece-se que se trata aqui dos adivinhos como já os descrevemos. Ora, acrescentam eles, antes que uma posição perfeita possa produzir-se, posições imperfeitas devem precedê-la, o que traz como resultado o aparecimento de um ou mais adivinhos, como a posição perfeita, sendo uma só, traz um profeta perfeito. Se as posições que indicam fatos desta natureza deixam de acontecer, nenhum dos resultados terá também lugar. Isto é baseado sobre princípio que uma posição imperfeita dos astros exerce influência imperfeita. Mas estas teorias não são geralmente aceitas. É possível que a posição perfeita não chegue a exercer sua influência senão em casos excepcionais e que uma posição imperfeita não traga nenhum resultado, ao contrário da afirmação dos filósofos de que traz resultados imperfeitos.
Todos os adivinhos de um profeta sabiam da veracidade da sua palavra e compreendiam o alcance demonstrativo de ¿eus milagres; eles participavam num certo grau da natureza profética, do mesmo modo que todos os homens participam da faculdade de obterem revelações por meio de sonhos. Mas, neste ponto, as percepções intelectuais são mais numerosas nos adivinhos. Quando estes se negavam a confessar que o Profeta era verídico e se deixavam levar a desmenti-lo, seu procedimento era simplesmente devido às sugestões do amor próprio e da ambição frustrada, que os levam a crer que esta faculdade devia pertencer-lhes. Caíam, assim, na obstinação, como caiu Omaiya Ibn Abi Salt, que esperava ser profeta. O mesmo aconteceu com Ibn Saiyad, com Muçaylima, e outros. Mas quando o triunfo da verdadeira religião pôs fim a seus vãos desejos, os adivinhos aderiram a ela, como fizeram Tulayha Al Açadi e Karib Ibn Al Assuad. A sinceridade de sua conversão está atestada pela bravura que mostraram quando das primeiras conquistas do Islamismo3.
Tanto os Árabes como grande parte dos povos antigos acreditavam no poder do ritmo. “Carmen”, para os primitivos Romanos, designava uma fórmula rítmica notadamente mágica. (Nota dos Trad.). ↩
Ibn Sayiad, célebre adivinho, que os muçulmanos apelidaram de “Dajjal”, o Anticristo, começou por se dedicar ao profetismo e acabou convertendo-se ao islame. Morreu cerca dos anos 682/3 J. C. ↩
Tulayha e Muçaylima, contemporâneos e rivais de Mahomet, receberam seus nomes no diminutivo, por parte dos Muçulmanos, por se terem revoltado e combatido a nova religião. Muçaylima representou gravíssimo perigo no Leste da Península, para o Islame nascente. Foram necessárias a habilidade do maior general árabe, Khalid Ibn Al-Walid, e muitas encarniçadas batalhas, para vencê-lo no ano da H. 12. Tulayha foi chefe e adivinho dos Banu Açade, e outras tribos do Centro da Arábia. Grande número de seus partidários, negando-se a aceitar o Islame, foram queimados vivos. Convertido ao novo credo, teve uma carreira militar brilhante. Parece ter realizado o tipo perfeito do chefe de tribo, acrescentando a sua qualidade contestada de adivinho às reais qualidades de poeta, de orador e de guerreiro. Quanto a Omaiya Ibn Abi Salt, foi um poeta cujas relações com Mahomet não foram das mais amistosas, ao contrário das suas aspirações religiosas, que parecem ter encontrado no Alcorão um eco não só para as ideias mas também para a expressão. Karib Ibn Al-Assuad, chefe da tribo de Thakif, comandou a defesa da cidade de Taif contra Muhammad, e acabou convertendo-se ao Islamismo. (Nota dos Trad). ↩