Ibn Khaldun Videntes

Ibn KhaldunProlegômenos

Excertos da tradução de José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury, IBF, 1958

SEXTO DISCURSO PRELIMINAR

TRATANDO DOS HOMENS QUE, SEJA POR DISPOSIÇÃO INATA, SEJA POR TREINO OU DISCIPLINA, CHEGAM A PERCEBER O MUNDO INVISÍVEL; COM OBSERVAÇÕES PRELIMINARES SOBRE A NATUREZA DA REVELAÇÃO

IV — O ANÚNCIO DOS ACONTECIMENTOS FUTUROS; DIVERSOS GÊNEROS DE VIDENTES

Dentro da espécie humana, encontram-se pessoas que anunciam os acontecimentos futuros, faculdade que as distingue dos outros homens. Para chegarem ao exercício deste talento, não carecem de recorrer a meios artificiais, nem à influência dos astros, nem a qualquer outro meio. Foi demonstrado, nas páginas anteriores, que a potência perceptiva destes homens depende inteiramente de uma certa aptidão neles inata. O mesmo acontece com os chamados “Arrafa” (ou Sabedores) e os que olham nos corpos refletores (lit. diáfanos) como os espelhos e as cubas contendo água. Pode-se incluir na mesma categoria os arúspices, que inspecionam o coração, o fígado e os ossos de animais; os augures que observam os sinais fornecidos pelo voo das aves e pela direção dos animais selvagem; os que lançam ao chão quer pedras, quer grãos de trigo, quer caroços, e tiram previsões da posição formada. É incontestável que tais faculdades existem entre os homens e ninguém pode negá-las. Acrescentemos a esta lista os possessos, gente cuja boca pronuncia palavras postas nela por um ser do mundo invisível e que servem de informações. Podemos mencionar ainda as pessoas que, na iminência de adormecer ou de morrer, falam das coisas do mundo invisível. Citemos também os Sufis, homens que possuem conhecimentos futuros por via da “Caramat” (ou Carisma) .

Vamos tratar agora das diversas maneiras de obter estas percepções. Começaremos pela adivinhação, discutindo as outras em seguida. Mas, antes de abordar o assunto, apresentaremos algumas observações que esclarecem como a alma, em cada classe das pessoas em questão, adquire a disposição que lhe permite recolher as percepções no mundo invisível.

A alma é, como já se disse, uma essência espiritual que existe em potência, o que a distingue do resto dos seres espirituais. Ela passa da potência ao ato mediante a ação do corpo e das circunstâncias que podem afetar o corpo: o que é um fato que todo o mundo pode reconhecer. Ora, o que existe em potência é composto de matéria e de forma. A forma que torna completa a existência da alma consiste em perceptividade e em intelecto. A alma existe primeiro em potência, com uma disposição que lhe facilita a percepção e lhe permite receber as formas quer universais, quer particulares. Em seguida, seu crescimento e sua existência em ato aperfeiçoam-se pela cooperação do corpo que a acostuma a receber as percepções obtidas pelos sentidos. A alma não deixa de perceber e de adquirir noções gerais, e, como estas formas que ela recolhe se intelectualizam umas após outras, acaba por adquirir ela mesma uma forma em ato composta de percepções e de intelecto. Enquanto a sua essência vai se aperfeiçoando deste modo, ela fica como uma matéria à qual a percepção fornece sucessivamente diversas formas. Eis porque as crianças, na sua primeira idade, estão incapacitadas de exercer a faculdade perceptiva, embora inata; mesmo assim, não podem servir-se dela, nem no estado de sono, nem quando lhes ocorre uma revelação, nem em qualquer outra circunstância. Com efeito, quer a forma da alma, quer sua essência real composta de percepções de intelecto, não são completas nesta idade, como são insipientes suas aptidões para receber os universais. Mais tarde, quando sua essência se tornar perfeita em ato, a alma, enquanto unida ao corpo, achar-se-á munida de duas espécies de percepções: uma, que se faz pelo instrumento do corpo, transmite-lhe percepções corporais; a outra, recebe-as por meio da própria essência. A alma se acha excluída desta segunda espécie de percepção enquanto estiver sujeita ao corpo e distraída pelas preocupações trazidas pelos sentidos. Os sentidos atraem a alma sem cessar para o mundo exterior por ser predisposição natural dela ocupar-se de percepções corporais. Todavia, às vezes, desvia-se do mundo exterior para mergulhar no interior e, então, o véu do corpo é levantado durante um instante de tempo. Este fato ocorre seja por meio de uma faculdade comum a todos os homens, como o sono, por exemplo, seja graças a uma faculdade própria de certos indivíduos, como o talento da adivinhação, ou o de prognosticar por meio de lançamento de pedras, ou ainda a habilidade adquirida por exercícios espirituais semelhantes aos que praticam os Sufis. Desvencilhada das influências extrínsecas, a alma volta-se para as essências que estão acima dela e que fazem parte da Companhia Sublime, Esfera esta realmente em contato com a dela, como já foi indicado. Estas essências são espirituais, porque são percepção pura e inteligência em ato e, como tais, possuem as formas dos seres com sua verdadeira natureza, como já se disse. Algumas destas formas aparecem de uma maneira bastante clara para permitir à alma conhecê-las. A alma as transmite à imaginação para confeccioná-las nos moldes habituais a seu proceder. Em seguida, retomando estas formas despidas de toda mistura extrínseca, ou formadas nos moldes que lhes deu a imaginação, a alma as reconduz ao domínio dos sentidos e as faz conhecer. Eis, pois, em que consiste a disposição que leva a alma a recolher percepções no mundo invisível.

(Depois desta explanação), voltemos ao nosso assunto e tratemos dos diversos gêneros de adivinhação.

Os que olham nos corpos diáfanos, como espelhos, cubetas cheias de água e os líquidos; os que inspecionam o coração, o fígado e os ossos dos animais; os que conjeturam pelo lançar das pedras ou caroços, toda esta gente pertence à categoria dos adivinhos; mas, devido à imperfeição radical de sua natureza, vêm ocupando uma posição inferior.

Para apartar o véu dos sentidos, o verdadeiro adivinho não despende grandes esforços enquanto que os outros, para alcançar seu objetivo, precisam concentrar em um só sentido todas as suas percepções. Como a vista é o mais nobre, dão-lhe a preferência, e, fixando o olhar num objeto de superfície unida, o consideram com atenção e demoradamente até perceber nele o que anuncia. Alguns acreditam que a imagem percebida deste modo se imprime na superfície do espelho; mas é um engano. O adivinho olha fixamente esta superfície, até que desaparece e que uma cortina semelhante a uma neblina, venha interpor-se entre ele e o espelho. Sobre esta cortina se reproduzem as formas que se desejam ver, e isto permite fornecer as indicações, quer afirmativas, quer negativas, que lhe pedem, contando as percepções que recebe. Os adivinhos, enquanto neste estado, não percebem o que se vê realmente no espelho, nem o próprio espelho. É uma outra espécie de percepção que nasce neles, que se desenvolve e opera, não por meio da vista, mas por meio da alma. É verdade que, para eles, as percepções da alma se parecem com as dos sentidos ao ponto de iludi-los, como é sabido. A mesma coisa acontece com os que consultam o coração, ou fígado de animais ou que olham para a água em cubetas, etc. Temos visto alguns destes indivíduos impedirem a ação dos sentidos por emprego de simples fumigação, recorrendo em seguida a encantações para pôr a alma na disposição favorável; feito isto, contam o que perceberam. Estas formas, dizem eles, deixam ver-se no ar e representam personagens; como se mostram também por meio de emblemas e de sinais e, sob estas figuras, ensinam aos adivinhos o que procuram saber. Os indivíduos desta classe furtam-se à influência dos sentidos muito menos que os da classe anterior. O Universo é cheio de maravilhas.

Chama-se ZAJR ou augúrio às predições que fazem certos homens, que, depois de ver o voo de uma ave ou a direção que tomou algum quadrúpede, se à esquerda, se à direita, e, depois de longamente meditar, anunciam acontecimentos futuros. Esta faculdade existe na alma e tem por objeto refletir e conjeturar (acerca das coisas futuras), baseando-se nas indicações que lhe ofereceu a vista ou o ouvido. Como sua influência procede da imaginação e é muito forte, como já foi demonstrado, o augure excita a imaginação e a leva a esforçar-se, servindo-se do que viu ou ouviu, para chegar a certo resultado, tal como aconteceu com a ação da potência imaginativa durante o sono e o letargo dos sentidos. Neste caso, a imaginação recolhe as percepções obtidas pela vista no estado de vigília e junta-as às percebidas pela inteligência, resultando daí a visão espiritual.

No caso dos DEMENTES, a alma acha-se numa dependência fraca para com o corpo, em consequência, geralmente, da imperfeição de seu temperamento e da fraqueza de seus espíritos animais. Alienada pela dor de sua imperfeição e pela doença de que é atacada, a alma sobrenada, por assim dizer, por cima dos sentidos, sem mergulhar neles. Às vezes, um outro espírito, de natureza satânica, obriga a alma a reencetar seu comércio com o corpo, e ela, sendo muito frágil para resistir-lhe, se debate, dando mostras de loucura. Tomada destes acessos, seja porque a imperfeição de seu temperamento age sobre a enfermidade do corpo, seja porque a molestam os espíritos satânicos, por estar ainda na dependência do corpo, a alma se evade fugindo à influência dos sentidos para lançar um olhar momentâneo ao seu microcosmo. Recebendo então a impressão de algumas formas, entrega-as à operação plástica da imaginação. Enquanto a alma está neste estado, a imaginação fala pela boca do demente sem que ele queira articular uma palavra sequer. As percepções recolhidas pelos homens de todas estas classes oferecem uma mistura de verdades e de ilusões; mesmo que se furtem à influência dos sentidos, não podem pôr-se em contato com o Mundo Espiritual, a menos que empreguem o recurso das formas extrínsecas, que é o processo necessário como já foi estabelecido. Eis a razão porque as suas percepções são uma mistura de falsidades.

Quanto aos ARRAFA, (Sabedores), procuram obter percepções espirituais sem terem o meio de pôr sua alma em contato com o Munndo Invisível. Concentrando a faculdade de reflexão sobre a coisa que procuram saber, recorrem a suposições e conjeturas, partindo da opinião de que possuem um começo de contato e de percepção com o Mundo Espiritual, tal como o imaginam, quando na realidade, não têm dele qualquer conhecimento.