Para uma leitura filosófica do Yi King, Le Livre de Poche, 1993 (trad. em português publicada pela Editora 34)
Resumo do capítulo 1: Um “Clássico” da “Transformação”
A partir do “Grande Comentário” (ou “Fórmulas anexadas” na tradução de Philastre), que é a primeira interpretação do núcleo básico do I Ching, composto de configurações de traços plenos e partidos, Jullien procura estabelecer o dispositivo do livro e seu funcionamento.
O I Ching se desdobra e se organiza, de modo independente de um texto, repousando inteiramente apenas sobre o jogo de dois tipos de traços (pleno e partido), e a série de configurações que até 6 destes traços podem compor.
O texto que acompanha estas figurações, se reduz assim apenas aos comentários, acumulados ao longo do tempo, dos sábios que sobre ele se debruçaram; embora exterior ao núcleo do I Ching, é mesmo assim difícil estabelecer a fronteira entre Hexagramas e o que quer que esteja escrito como título, fórmula ou comentários, deste núcleo central.
Sucessão de autores, unidade da obra
Lenta estratificação, a partir de um núcleo central de figuras básicas, e composta por séculos e séculos de comentários, acompanhando o desdobramento da história da China.
Genealogia desde o mítico Fu Xi, compositor dos Trigramas e dos Hexagramas, que estabeleceu a “lógica” do sistema embora seus princípios ainda permaneçam obscuros; passa-se ao rei Wen e seu filho o duque de Zhou, onde o “texto” propriamente dito começa, lançando uma primeira luz sobre as combinatórias de traços; Confúcio é o elo seguinte desta genealogia, que agora só faz enriquecer os comentários, a parte “textual” do I Ching; seguem-se outros sábios até Wang Fuzhi (doravante WFZ), que Jullien adota como guia na compreensão e interpretação do I Ching.
De um autor a outro, de uma elo da genealogia a outro, o livro permaneceu idêntico a ele mesmo: em seu núcleo central o mesmo desde Fu Xi, sendo os textos agregados como camadas sucessivas de interpretação que se complementam e se alimentam mutuamente.
Estatuto absoluto do livro
Como a Bíblia, o I Ching tem a vocação de esclarecer o mistério do real, a partir de uma visão absoluta, do Absoluto, como sublinha o “Grande Comentário” atribuído a Confúcio, ele serve para “revelar a Via”, aquela de onde procedem sem fim as existências e à qual o homem deve se conformar; ele permite ascender à dimensão do “espírito”, propriamente “insondável” que não cessa de animar a realidade.
O “Clássico da Transformação” está “à medida do Céu e da Terra”: “eis porque está de acordo universalmente com a Via do Céu e da Terra”, i.é. o grande processo do Mudo, a ele casando “completamente” a “lógica interna”. Seus dois primeiros Hexagramas, com efeito, representam a polaridade de onde tudo decorre, “comandam ao conjunto da realidade”; a partir deles, as outras figuras, e todos seus traços, vão até o limite” de todas as modificações possíveis. Assim o Clássico reproduz, a partir de sua própria estrutura, e de modo fiel, todo “ser constitutivo da realidade”, mas desdobra também de modo exaustivo, através de voltas e reviravoltas e segundo as abordagens mais diversas, o “funcionamento” (em termos confucianos, ti e yong) integral, permitindo apreender totalmente e de modo correto o andar das coisas.
O Clássico imita as “transformações engendradas pelo Céu e a Terra” de maneira tão semelhante comose cada hexagrama e seus traços fossem um “molde” de uma situação ou existente; ele assim as recolhe completamente, e as guarda, no interior de seu próprio “perímetro”. Assim o I Ching não excede a realidade, mas não deixa nada de lado. Ao “abrir a existência”, a alternância regulada do Yin-Yang, posta em cena pelo I Ching, “está na origem de todas as situações como de todos os existentes”.
A garantia de completude do I Ching e de não extravasamento do real, está na articulação de base que instauram, no início do livro, os dois primeiros Hexagramas — Céu e Terra -, polaridade complementar cujo jogo fundamenta todas as demais configurações e suas interpretações, sendo rejeitado o que fora disto se encontrar. Segundo fórmula do “Grande Comentário” estas duas figuras constituem todo o “interior” do livro, bastando estar estabelecidas para que o livro se estabeleça; bastando não serem devidamente consideradas para que “não se possa mais perceber em que este livro consiste”. Estes Hexagramas formam uma espécie de porta de dois batentes por onde tudo passa: a extrema complexidade do real, que assume a série das figuras e dos traços, não escapando deste quadro inicial.