De ULISSES jorram 735 páginas, numa torrente de 735 horas, dias ou anos que representam um único dia, ou seja, o inexpressivo 16 de junho de 1904, em Dublin, durante o qual, realmente, nada acontece. A torrente começa no nada e termina no nada. Seria, para o assombro do leitor, uma única verdade strindbergiana sobre a essência da vida humana, tremendamente longa, intrigantemente emaranhada e inesgotável? Sobre a essência talvez, mas certamente sobre as dez mil facetas e suas cem mil subgradações de sombras. Nestas 735 páginas não há, a meu ver, qualquer repetição evidente, nenhuma única ilha de paz e felicidade, onde o leitor benevolente, atordoado de reminiscências, pudesse sentar-se após um caminho percorrido de, digamos, umas cem páginas, para contemplar com satisfação, nem que fosse apenas a recordação de um lugarzinho comum, que, prazerosamente, se tivesse insinuado de novo nalgum lugar inesperado. Mas não, uma torrente impiedosa e ininterrupta vai rolando e passando. Sua velocidade ou continuidade aumenta nas últimas quarenta páginas, chegando a uma completa falta de pontuação, em que o vazio sufocante ou irrespirável, tenso ou saturado quase insuportável, se expressa da maneira mais cruel. Este vazio inteiramente sem esperanças é a nota dominante de todo o livro. Ele não só começa e acaba no nada, mas também consiste apenas de nadas. Tudo é infernalmente nulo, decididamente um brilhante produto do inferno, se considerarmos o livro sob o aspecto de uma obra de arte técnica.
Eu tinha um velho tio que pensava de modo retilíneo. Um dia ele me parou na rua e me perguntou: “Sabe como é que o diabo tortura as almas no inferno? Ele as deixa esperando.” Essa observação voltou-me à memória quando percorri ULISSES pela primeira vez. Cada frase contém uma expectativa que não se concretiza; por fim, por mera resignação, o leitor já nem espera mais nada e, para seu reiterado espanto, percebe gradativamente que, de fato, acertou. Na verdade, nada acontece, nada resulta daí, e, contudo, uma secreta expectativa em antagonismo com uma resignação sem esperança, arrasta-nos página por página. As 735 páginas que nada contêm não são, de modo algum, páginas em branco, mas, pelo contrário, densamente impressas.
A versatilidade de Joyce tem um efeito monótono e hipnótico. Nada vem ao encontro do leitor, tudo se afasta dele, deixando-o para trás, olhando embasbacado. E vai vivendo esquivando-se, nada satisfeito consigo mesmo, mas irônico, sarcástico, venenoso, desdenhoso, triste, desesperado, amargo, e assim, arrastaria a simpatia do leitor de modo pernicioso, se um sono solícito não interrompesse bondosamente todo esse dispêndio de energia.
Esta incrível e sinistra qualidade do espírito de Joyce demonstra que sua obra pertence à classe dos animais de sangue frio e à dos vermes em especial; estes, se tivessem capacidade literária, usariam, na falta de um cérebro, o sistema nervoso autônomo. Presumo que em relação a Joyce exista algo parecido, portanto um modo de pensar visceral, por meio da ampla repressão da atividade cerebral que, no caso dele, está restrita substancialmente à percepção. A atividade de Joyce no plano sensorial deve ser admirada sem restrições: o que vê, ouve, degusta, cheira e apalpa, tanta interna como externamente, e o modo como o faz, é realmente assombroso. Normalmente, o comum dos mortais, sendo especialista em esferas sensoriais ou de percepção, restringe-se ao externo ou ao interno. Joyce conhece ambos. Guirlandas de associações subjetivas entrelaçam-se com figuras objetivas de uma rua de Dublin. Objetivo e subjetivo, externo e interno interligam-se mútua e constantemente de tal modo que, apesar da clareza da imagem individual, persiste no final a dúvida se se trata de uma lombriga física ou transcendental. É bem verdade que a lombriga não pode produzir nada além de novas lombrigas, mas isto ela consegue com uma abundância inesgotável. O livro de Joyce poderia ter 1.470 páginas ou até o múltiplo disto, e a infinidade não teria diminuído uma gota sequer e ele ainda não teria dito o essencial. Mas será que Joyce quer realmente dizer algo essencial? Será que este velho preconceito ainda tem aqui alguma razão de ser? Na opinião de Oscar Wilde, a obra de arte é algo completamente inútil. Em nossos dias até o auto-satisfeito culturalmente nada teria a objetar; contudo, o seu íntimo espera algo “essencial” da obra de arte. Mas onde se encontra isso em Joyce? Por que ele não diz? Por que ele não o expõe ao leitor, apontando-lhe com expressivos gestos “um caminho santo onde os tolos não andem sem rumo certo”?
A auto-satisfação cultural está tão arraigada em meu sangue que pressuponho ingenuamente que um livro queira dizer-me algo e queira ser compreendido — evidentemente um antropomorfismo mitológico projetado no objeto, o livro! Sobretudo este livro sobre o qual não se pode ter uma opinião — essência de uma aborrecida derrota do leitor inteligente. Um livro enfim tem um conteúdo, representa alguma coisa, mas desconfio que Joyce nada quisesse “representar”. Ou será que o livro representa ele mesmo — e talvez, por causa disso, esta indivisível solidão, esse procedimento sem testemunhas oculares, essa irritante descortesia em relação ao leitor aplicado? Joyce despertou minha má vontade. Nunca se deve colocar o leitor diante da própria burrice — ULISSES, no entanto, fez exatamente isso.
Estou convencido do seguinte: ainda estamos imersos até o nariz na Idade Média. Nada pode abalar esta situação. E por isso é necessário que profetas negativos como Joyce (ou Freud) esclareçam os contemporâneos medievais sobre a outra realidade. Naturalmente esta tarefa gigantesca não seria realizada por alguém que tentasse, com boa vontade cristã, guiar e orientar pessoas a olharem, contra sua vontade, para o lado sombrio do mundo. Isto os levaria a “olharem” com total desinteresse. Não, esta revelação deve acontecer junto com a atitude mental condizente e, nisto, Joyce é um verdadeiro mestre. Só assim começará o jogo das forças emocionais negativas. ULISSES mostra como executar o “sacrílego manejo para trás” de Nietzsche. Ele o demonstra fria e objetivamente e de maneira tão desmitificada, como nem o próprio Nietzsche jamais o sonhara. Tudo isto numa suposição tranquila, mas certa, de que a influência fascinante do ambiente espiritual nada tem a ver com a razão, mas apenas com o sentimento! Pelo fato de Joyce nos apresentar um mundo horrivelmente árido, ateu, e insípido, não nos perturbe a ideia de que seja impossível alguém haurir algum conforto dessa obra. Por mais estranho que possa parecer, é realmente verdade que o mundo de ULISSES é bem melhor do que o mundo daqueles que continuam presos, sem esperanças, à escuridão do lugar de sua origem espiritual. Mesmo que predominem o mal e a destruição, eles vivem, contudo, na claridade, ao lado ou talvez até acima do “bem”, do “bem” legado pelo passado mas que, na realidade, se mostra um tirano intransigente, um sistema ilusório de preconceitos que, de modo cruel, despoja a verdadeira vida de sua possível riqueza e exerce sobre todos aqueles presos uma coação moral e mental que se torna insuportável com o tempo.
ULISSES é um documento humano de nosso tempo, e mais, é um segredo. É bem verdade que ele pode libertar os que estão presos espiritualmente e que sua frieza consegue congelar, até a medula, não só o sentimentalismo, mas o próprio sentimento normal. Mas estes efeitos salutares não esgotam a sua essência. Dizer que foi o próprio diabo quem apadrinhou a obra é uma observação espirituosa interessante, mas não satisfaz. Há vida na obra, e a vida nunca é apenas má e destrutiva. Na verdade, tudo o que de imediato podemos apreender neste livro é negativo e solúvel, mas pode-se pressentir algo intangível, uma intenção secreta que lhe dá sentido e, portanto, valor. Seria este mosaico colorido de palavras e imagens porventura “simbólico”? Por Deus, não estou me referindo a uma alegoria, mas ao símbolo como expressão de uma essência intangível. Aqui e ali ressoam sons já ouvidos em outros lugares, talvez em sonhos raros ou nas obscuras sabedorias de raças esquecidas.
Mas o que perturba em ULISSES é que, atrás de milhares e milhares de véus, nada existe. Não se dirige ao espírito e nem ao mundo. Frio como a lua, observando de uma distância cósmica, permite que a comédia da criação, da existência e do desaparecimento siga seu curso. Ele quer ser um olho lunar, uma consciência desligada do objeto; não escravizado por deuses, nem pela luxúria; não preso por amor ou ódio, por convicção ou preconceito. O desprendimento da consciência é a meta que começa a se manifestar por trás da cortina nebulosa deste livro. Este é certamente o verdadeiro segredo da nova consciência cósmica que não é revelado àquele que leu conscientemente as 735 páginas, mas àquele que durante os 735 dias contemplou o seu mundo e sua própria mente através dos olhos de ULISSES.