Kafka, O Processo e o Castelo

Calasso, 2002

O processo e O castelo são histórias em que se trata de concluir um trâmite: livrar-se de um procedimento penal, confirmar uma nomeação. O ponto em torno ao qual tudo gira é sempre a eleição, o mistério da eleição, a sua obscuridade impenetrável. No Castelo, K. deseja a eleição — e isso complica infinitamente cada ato seu. No Processo, Josef K. deseja subtrair-se à eleição — e isso complica infinitamente cada ato seu. Ser escolhido, ser condenado: duas modalidades do mesmo procedimento. A relação de Kafka com o judaísmo, examinada em cada recanto, com pertinácia muitas vezes vã, é perceptível sobretudo neste ponto, que assinala a diferença essencial entre o judaísmo e o que o circundava. Bem mais que o monoteísmo ou a lei ou a moral superior. Afinal de contas, para cada uma dessas características é possível encontrar predecessores ou análogos egípcios, mesopotâmicos, gregos. Ao passo que a ênfase na eleição, essa sim é única — e fundada numa teologia do único.

O tribunal tem o poder de punir. O Castelo, o de eleger. Os dois poderes são perigosamente próximos, por vezes coincidentes. Ninguém mais do que Kafka, por atavismo e por vocação, possuía antenas para reconhecê-los. Para ninguém mais aquela adjacência e aquela sobreposição eram tão familiares. Mas não se tratava apenas de um legado judaico. Era coisa de todos e de sempre.

O processo e O castelo têm um pressuposto idêntico: a eleição e a condenação quase não se distinguem. Esse quase é o motivo pelo qual os romances são dois, e não um. O eleito e o condenado são os escolhidos, aqueles que são isolados entre tantos, entre todos. Desse isolamento provém a angústia que os envolve, seja qual for a sua sorte.

A principal diferença reside nisso: a condenação é sempre certa; a eleição, sempre incerta.

 

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