VIDE: TEXTO INTEGRAL
São Bernardo
(Excertos da tradução de Antonio Carlos Carvalho)
No decurso de todas as suas viagens, São Bernardo apoiou constantemente a sua pregação em numerosas curas milagrosas, que eram para as multidões como que sinais visíveis da sua missão; estes factos foram contados por testemunhas oculares, mas ele referiu-se muito pouco a eles e contra vontade. Talvez essa reserva lhe fosse imposta pela sua extrema modéstia; mas também certamente atribuía a esses milagres apenas uma importância secundária, considerando-os somente como uma concessão divina à fraqueza da fé na maior parte dos homens, de acordo com as palavras de Cristo: “Felizes aqueles que acreditam sem terem visto”. Essa atitude estaria de acordo com o desdém que ele manifestava, em geral, por todos os meios exteriores e sensíveis, tais como a pompa das cerimónias e a ornamentação das igrejas; foi mesmo possível censurarem-no, com alguma aparência de verdade, por ter manifestado desprezo pela arte religiosa. Os que formulam esta crítica esquecem, todavia, uma distinção necessária, a que ele próprio estabelece entre o que chama arquitectura episcopal e arquitectura monástica: só esta última deve ter a austeridade que ele preconiza; somente aos religiosos e aos que seguem o caminho da perfeição ele proíbe o “culto dos ídolos”, ou seja, das formas, acerca das quais, pelo contrário, ele proclama a sua utilidade como meio de educação para os simples e os imperfeitos. Se ele protestou contra os abusos das figuras desprovidas de significado e tendo apenas valor ornamental, não podia querer, como falsamente se afirmou, abolir o simbolismo da arte arquitectural, quando ele próprio o utilizava frequentemente nos seus sermões.
A doutrina de São Bernardo é essencialmente mística: queremos dizer que ele encara sobretudo as coisas divinas sob o aspecto do amor, o que seria, aliás, errado interpretar aqui num sentido simplesmente afectivo, como o fazem os modernos psicólogos. Tal como muitos dos grandes místicos, ele foi especialmente atraído pelo “Cântico dos Cânticos”, que comentou em numerosos sermões, formando uma série que prosseguiu através de quase toda a sua carreira; e este comentário, que ficou por terminar, descreve todos os graus do amor divino até à paz suprema que a alma alcança no êxtase. O estado de êxtase, tal como ele o compreende e certamente alcançou, é uma espécie de morte para as coisas deste mundo; com as imagens sensíveis todo o sentimento natural desaparece, tudo é puro e espiritual na alma como no seu amor. Este misticismo devia naturalmente reflectir-se nos tratados dogmáticos de São Bernardo; o título de um dos principais, “De diligendo Deo”, mostra efectivamente o lugar aí ocupado pelo amor; mas seria errado acreditar que isso aconteça em detrimento da verdadeira intelectualidade. Se o abade de Claraval quis sempre permanecer estranho às vãs subtilezas da escola é porque não tinha qualquer necessidade dos laboriosos artifícios da dialéctica; resolvia de um só golpe as questões mais árduas, nunca procedendo segundo uma longa série de operações discursivas; aquilo que os filósofos se esforçam em alcançar através de um desvio, e como que tacteando, ele atingia-o imediatamente pela intuição intelectual, sem a qual nenhuma metafísica real é possível, e fora da qual só se pode colher uma sombra da verdade.
Um último traço da fisionomia de São Bernardo que é ainda necessário assinalar é o lugar eminente ocupado na sua vida e nas suas obras pelo culto da Santa Virgem e que deu lugar a um florescer de lendas que são talvez o seu traço mais popular. Ele gostava de dar à Virgem o título de Nossa Senhora, tendo-se esse uso generalizado desde então, e sem dúvida em grande parte graças à sua influência; é que ele era, como se disse, um verdadeiro “cavaleiro de Maria” e via-a realmente como a sua “dama” no sentido cavalheiresco desta palavra. Se se aproximar este facto do papel que desempenha o amor na sua doutrina, e que desempenhava também, sob formas mais ou menos simbólicas, nas concepções próprias das Ordens de Cavalaria, compreender-se-á facilmente a razão pela qual nós tivemos o cuidado de mencionar as suas origens familiares. Mesmo depois de se fazer monge continuou a ser cavaleiro, como eram todos os da sua raça; e por isso mesmo se pode dizer que ele estava de certo modo predestinado a desempenhar, como o fez em tantas circunstâncias, o papel de intermediário, de conciliador e de árbitro entre o poder religioso e o poder político, porque havia na sua pessoa como que uma participação na natureza de um e de outro. Monge e cavaleiro, simultaneamente, estes dois caracteres eram os dos membros da “milícia de Deus” da Ordem do Templo; eram também, e primeiro que tudo, os do autor da sua regra, do grande santo que foi chamado o último dos Padres da Igreja e em quem alguns querem ver, não sem alguma razão, o protótipo de Gallaz, o cavaleiro ideal e sem mancha, o herói vitorioso da “demanda do Santo Graal”.