(v. ciclope)
Ser cego significa, para uns, ignorar a realidade das coisas, negar a evidência e, portanto, ser doido, lunático, irresponsável. Para outros, o cego é aquele que ignora as aparências enganadoras do mundo e, graças a isso, tem o privilégio de conhecer sua realidade secreta, profunda, proibida ao comum dos mortais. O cego participa do divino, é o inspirado, o poeta, o taumaturgo, o Vidente. Em resumo, são esses os dois aspectos — fasto e nefasto, positivo e negativo, do simbolismo do cego, entre os quais oscilam todas as tradições, mitos e costumes. E é por isso que a cegueira, que às vezes é uma sanção divina, não deixa de relacionar-se com as provas iniciáticas. Assim também os músicos, bardos e cantores cegos abundam, na qualidade de seres Inspirados, em todas as tradições populares.
Indubitavelmente é por causa das esculturas representando um Homero cego, que a tradição faz do cego um símbolo do poeta itinerante, do rapsodo, do bardo e do trovador. Ainda nesse caso, porém, não ultrapassamos a alegoria. Também é frequente representar-se a cegueira nos velhos: ela simboliza, então, a sabedoria do ancião. Os adivinhos são geralmente cegos, como se fosse preciso ter os olhos fechados à luz física a fim de perceber a luz divina. Em certos casos, a cegueira é um castigo infligido pelos deuses aos adivinhos que abusavam de seu dom de videntes para contemplar a nudez das deusas, ou ofender de algum modo os deuses, ou divulgar os segredos do arcano. Tirésias, o adivinho, foi privado da vista por Atena, por tê-la espiado quando se banhava; Édipo furou voluntariamente os próprios olhos, como expiação de seu duplo crime. Tobias ficou cego enquanto dormia: mas o fel de peixe administrado por seu filho, a uma ordem do anjo de Jeová, abre-lhe as pálpebras. Sansão perde a vista após ter pecado contra Jeová etc. Os deuses cegam ou convertem em loucos aqueles que desejam arruinar e, por vezes, salvar. Se assim aprouver aos deuses, porém, o culpado recobra a vista, pois são eles os donos da luz. Tal é o sentido principal dos milagres de Jesus ao curar os cegos. Milagres semelhantes foram atribuídos, na Antiguidade, a Indra, Atena etc.
Entre os celtas, a cegueira constitui normalmente uma desqualificação para o sacerdócio ou para a função divinatória. Entretanto, por contra-iniciação, certo número de personagens míticos irlandeses dotados de vidência são cegos. Quando deixam de ser cegos é que perdem seu dom de vidência.
É possível que a visão interior tenha, por sanção ou por condição, que renunciar à visão das coisas exteriores e fugidias. Alguns ascetas hindus acreditam poder alcançar a iluminação espiritual fixando os olhos num sol ofuscante e ardente, até perderem a vista. O cego evoca a imagem daquele que vê outra coisa, com outros olhos, de um outro mundo: é considerado menos um enfermo do que um forasteiro, um estranho.
Os olhos, dos quais já se partiu a fagulha divina,
Mantêm-se, como se ao longe olhassem, erguidos
Para o céu; ninguém os vê jamais sonhadoramente
Inclinar para o chão sua triste cabeça.
. . .Assim atravessam a noite ilimitada,
Esta irmã do silêncio eternizado… (Baudelaire). (DS)
Os antigos representavam o amor como sendo cego. (Guénon)