essência e existência

O problema da distinção real.

A distinção no ser de um aspecto essência e de um aspecto existência é um destes dados imediatos que praticamente é reconhecido por todos. O ser nos aparece como “o que é”, isto é, como uma certa coisa, uma essência, que tem a propriedade notável de ser ou de existir. Que se tente eliminar totalmente pelo pensamento um destes dois aspectos e a noção mesma de ser desaparece.

Admitido isto, pode-se em seguida procurar precisar o que representa corretamente esta relação essência-existência e que lugar ou que função tem, na estrutura mesma do ser, cada um dos termos que ele implica. Duas posições características podem ser adotadas na solução do problema: ou se considera conjuntamente o ser como um bloco indiviso, do qual a essência e a existência definem somente dois aspectos subjetivos. Dir-se-á, neste caso, que entre essência e existência há somente uma distinção de razão, isto é, que não tem realidade senão no espírito que a concebe, mesmo que seja objetivamente fundada. Ou far-se-á da essência e da existência princípios ontológicos distintos cuja composição daria conta da estrutura metafísica profunda do ser. Afirma-se então que existe uma distinção real entre essência e existência, especificando-se bem, como veremos, que não se trata de uma distinção de coisas previamente existentes – o que não teria sentido mas de princípios interdependentes.

Do ponto de vista filosófico, este problema se. encontra colocado pelo fato da multiplicação formal e da limitação dos seres criados e, subsidiariamente, pela questão da relação destes seres com o ser incriado, único e infinito. Eis aí, com efeito, seres limitados e múltiplos. Por que são eles assim limitados e múltiplos? Considerando a multiplicidade dos indivíduos materiais, somos levados a dizer que isto se deve ao fato de tais seres serem compostos de matéria e de forma: a matéria recebe a forma que ela limita e multiplica. Mas se nos colocamos em face de uma multiplicidade de formas, e especialmente de formas puras, o que são para Tomás de Aquino as substâncias angélicas, a solução invocada, para o caso dos seres corporais, não tem mais valor: não há mais, aqui, matéria para limitar e multiplicar. É então que se é levado a perguntar se, no seio das próprias formas puras, não haveria uma composição, de outra ordem que a de matéria e forma, que viria dar conta da sua limitação e da sua multiplicação. Se, de outro lado, se consideram os seres limitados na sua referência ao ser ilimitado e incriado, pode-se perguntar o que fará com que toda essa multiplicidade de seres não venha a se perder na unidade panteísta do único ser primeiro. Com toda evidência deve haver entre os seres limitados e o ser infinito na sua simplicidade uma diferença de estrutura que parece requerer nos primeiros uma complexidade interna.

Histórico do problema.

Aristóteles, que não observou nitidamente o problema da multiplicidade formal nem o da relação dos seres limitados com o ato puro, não pôde tratar explicitamente da distinção que nos ocupa. Nada, entretanto, a isto se opõe em sua filosofia; pode-se mesmo dizer que pela sua dupla orientação rumo ao concreto do indivíduo existente e rumo aos valores inteligíveis da essência, tal filosofia ia logicamente nesse sentido. É com o neo-platonismo que se começa verdadeiramente a abordar o assunto. Boécio em um texto do De hebdomadibus, do qual em seguida nos serviremos em favor da distinção real, já distingue no ser o esse e o quod est, mas é claro que nada disse da realidade desta distinção. É preciso avançar até a filosofia árabe para encontrá-la explicitamente reconhecida. Avicena irá mesmo até fazer da existência uma espécie de acidente da essência, o que Tomás de Aquino, seguindo Averróis, retomará vivamente. É incontestavelmente ao Doutor angélico que cabe a honra de ter elaborado esta doutrina e de ter sistematicamente desenvolvido as consequências. Mas, nele procurar-se-ia em vão uma justificação explícita e formal da realidade da distinção em questão. A controvérsia sobre este assunto não estava ainda começada. Entretanto, essa tese se encontra implicada em todos os seus textos de modo tal que todo o conjunto se desagrega se interpretarmos os textos em um outro sentido. A polêmica somente tomará consistência após sua morte, quando Gilles de Roma, tendo afirmado a realidade da distinção, atraiu sobre si as críticas de Henri le Gand. Ulteriormente Scoto e Suarez, negando a realidade da distinção, provocarão discussões sem fim. Para todo esse histórico poder-se-á consultar com fruto a Introdução da edição por Roland-Gosselin do Ente et Essentia de Tomás de Aquino.

Provas da distinção real.

Da obra de Tomás de Aquino podem-se extrair duas provas principais da realidade dessa distinção: a primeira fundando-se sobre a distinção objetiva de seus dois princípios, a segunda repousando sobre a constatação de que em todo ser onde a existência se encontra recebida, a essência e a existência são realmente distintas.

Primeira prova (Cf. De ente et essentia, c. 5): Tudo o que não está contido na concepção que formamos da essência de uma coisa é-lhe acrescido do exterior; ora, colocado à parte o caso do ser cuja essência seria existir, isto é Deus, a existência de uma coisa não está contida na concepção que formamos de sua essência, sendo-lhe, portanto, acrescentada.

“Tudo o que não pertence ao conteúdo intelectual da essência ou da quididade lhe advém do exterior e entra em composição com ela, sendo dado que nenhuma essência pode ser apreendida pela inteligência sem suas partes. Ora, toda essência ou quididade pode ser compreendida sem que se tenha conhecimento de sua existência: posso, com efeito, compreender o que é um homem ou um fênix e ignorar entretanto se eles existem efetivamente na realidade. É, portanto, evidente que a existência é outra coisa do que a essência ou a quididade, colocado à parte o caso de uma coisa cuja quidade seria sua própria existência, e esta coisa só pode ser única e primeira… Donde se segue que em toda coisa diversa dela mesma, uma coisa é sua, existência e outra coisa sua quididade, ou sua natureza, ou sua forma”.

Segunda prova. Na maior parte dos casos Tomás de Aquino desenvolve seu pensamento colocando em paralelo o caso das coisas criadas, nas quais há uma real distinção da essência e da existência, e o caso do ser primeiro cuja essência é idêntica ao seu ser, o que supõe, evidentemente, demonstrada a existência de Deus. Este argumento, cujo fundo é sempre o mesmo, pode revestir várias formas. Eis como se encontra na Suma Teológica (Ia Pa, q. 3, a. 4).

Tudo o que está em um ser além de sua essência deve ser causado, seja pelos princípios desta essência … seja por qualquer coisa de exterior: “Quidquid est in aliquo quod est praeter essentiam ejus, opportet esse causatum, vel a principiis essentiae vel ab aliquo exteriori…”

Ora, é impossível que a existência seja causada somente a partir dos princípios essenciais de uma coisa, pois nenhuma coisa, se ela é um ser causado, é capaz por si mesma de ser causa deste ser: “impossibile est autem quod sit causarem tantum ex principiis essentialibus rei, quia nulla res sufficit quod sit sibi causa essendi si habeat esse causatum”.

É preciso pois que aquilo cuja existência é outra coisa do que a essência tenha seu ser causado por um outro: “oportet ergo quod illud cujus esse est aliud ab essentia sua habeat esse causatum ab alio”.

Donde se conclui que, ao mesmo tempo, em Deus, cujo ser é incausado, há identidade entre essência e existência, ao passo que nas criaturas, cujo ser é causado, uma coisa é a essência (aliud) e outra coisa é a existência (aliud).

Completa-se a prova observando-se que o ser cuja essência é idêntica à existência sendo único, todos os outros seres implicam a distinção real e que o ser que se encontra no primeiro caso é causa dos outros.

Sentido exato desta distinção.

As objeções que são feitas a esta tese repousam sobre interpretações incorretas que são oferecidas; faz-se mister precisar exatamente os termos

O ser do qual se procuram determinar os princípios componentes é a substância concreta existindo atualmente e não o simples possível. Não especulamos, pois, a propósito de uma noção, mas sim a propósito de realidades.

Nessa realidade distinguimos o sujeito essencial, res, e o que Tomás de Aquino chama indiferentemente ipsum esse, actus essendi, existentia; chamemos existência. E afirmamos que essa distinção é real. O que entendemos com isto? Que ela não existe simplesmente no espírito ou na razão, mas que é um dado estrutural do universo real. Entretanto, é preciso tomar cuidado em não se representar essa distinção como a de duas coisas que viriam se compor, tendo como resultado uma terceira. No plano da criatura, antes do ser, não há nem essência, nem existência, entidades que, por outro lado, são absolutamente incapazes de existir independentemente uma da outra. Nem a essência nem a existência existem isoladamente; somente existe o ser que elas compõem: são dois princípios correlativos que só têm realidade enquanto se completam.

É possível precisar que papel desempenha cada um dos elementos dessa distinção? O próprio Tomás de Aquino nos ensina que o esse desempenha a função de ato e a essência a de potência.

A existência se manifesta inicialmente como pura atualidade, e como ato ou perfeição última: esse est actualitas omnium -actuum et propter hoc est perfectio omnium perfectionum (De Pot., q. 7, a. 2, ad 9); ainda que a expressão seja equívoca: é o que existe, de mais formal em uma coisa. Em face disto, a essência aparece como uma potência, isto é, como uma capacidade real de receber, mas que é de um tipo bem diferente da matéria, pois ela própria é em sua ordem algo de atuado ou de determinado: a matéria das substâncias espirituais (entendendo-se com isto a essência) é, diz-nos Tomás de Aquino, um certo ser em ato, existindo em potência: aliquid ens actu in potentia existens (De substantiis separatis, c. 5, n: 35) . Essência e existência possuem, pois, cada uma em sua linha, valor de princípio determinante, permanecendo, contudo, que a existência é o ato último, a perfeição derradeira.

No momento em que se diz, enfim, que a essência recebe a existência, isto não é à maneira de um sujeito substancial que recebe de um acidente uma determinação nova; a existência não é um simples complemento do ser. Dever-se-ia dizer que ela é o que há de mais fundamental no ser concreto e que é a essência que vem determiná-la e limitá-la.

Todas estas considerações nos convidam a não utilizar senão de modo bastante analógico as noções de ato e de potência no caso privilegiado e único onde tais noções definem as relações da essência e da existência no ser criado. (Gardeil)