fatos e gestos

Se numa língua indo-europeia percorremos de trás para diante a árvore genealógica de uma família de palavras, guiados pela identidade dos fonemas, chegamos a uma raiz, onomatopaica ou simples som, cujo sentido muito geral transmitiu-se com infinitos matizes a todos os ramos derivados. Tomemos, por exemplo, a onomatopeia clic-clac e a raiz fia. Clic-clac traduz o estalido seco de duas superfícies. Dele saíram em francês o cliquet, o cliquetis, o déclic, a clanche (de uma fechadura), o verbo déclencher (abrir uma porta), o cliché (ruído das letras tipográficas caindo sobre o mármore). O latim clavis, a chave, deu clore, inclure, conclure, conclave. Do latim clarus, que designa um som estridente e metálico, deriva-se o que é claro e ilustre, como os nomes reais de Clotaire, Clodomir, Clóvis (que se tornou Hlovis) e a prestigiosa série dos Louls.

Se partimos da raiz fia que deu em latim flatus, o sopro, teremos enffer, gonfler, souffler, flûte, flan (torta soprada), flétrir, fiasco, (o que se esvaziou), flacon (feito de vazio), fou (cabeça vazia), fiou, flair.

Aproximando a onomatopeia ou raiz àquilo que de nossos sentidos lhe corresponde, obteremos duas séries de palavras, provindo uma do disparo de um dedo e a outra do sopro de uma boca. Graças a um dicionário etimológico, poderíamos assim esgotar o vocabulário de uma língua, levantando o quadro das derivações de algumas raízes ligadas a uma de nossas atividades.

A etimologia é uma ciência fascinante, que durante muito tempo foi uma arte, mas cujo testemunho continuará sempre conjectural. Supõe que se possa reconstituir a forma original de uma língua, falada durante milênios antes de ter sido escrita. É, entretanto, incapaz de invocar um documento probatório que legitime as mutações que supõe, e das quais acabamos de dar dois exemplos restritos á sua origem latina e unicamente fundados sobre leis da fonética.

Estas leis parecem indicar que existe uma relação segura, um parentesco homofônico entre o som e o sentido, um “gesto” e sua expressão falada. Dessa perspectiva há entre os linguistas duas posições opostas, já sustentadas por Platão e Aristóteles. Os platônicos pretendiam que a relação que liga a palavra e seu significado era espontânea e fundada sobre a natureza das coisas, enquanto os aristotélicos achavam que ela era arbitrária e convencional. Essa opinião, renovada pelo famoso Saussure, está hoje sujeita a contestação.

Se nos colocarmos em épocas muito afastadas, quando devem ter aparecido as primeiras vocalizações, pode-se acreditar que uma denominação arbitrária dos atos e das coisas fosse contrária à conduta habitual do homem primitivo, que obedecia apenas aos reflexos. Ele teve sempre a preocupação de traduzir tão naturalmente quanto possível o aspecto objetivo das coisas ou o sentimento subjetivo que experimentava, e que seus incomparáveis dons de observação lhe permitiam respeitar. Como é, por outro lado, inegável que a convenção deve ter posteriormente interferido para legitimar as palavras, devemos reunir as duas teses numa única, conciliando o que é válido em cada uma delas. Diremos, portanto, que uma convenção posterior, no caso de ter ela interferido, sancionou por assim dizer uma boa lei e u-ma situação de fato.

As raízes-mães, como pudemos observar, não representam o papel de coisas, mas de embriões de fatos ou de gestos obedecendo ao funcionamento de nossos órgãos e nos limites de nosso espaço. São muito pouco numerosas, e os linguistas calculam que nenhuma língua conhecida exige, para ser falada, um número de fonemas superior a cem, e geralmente exige bem menos.

Foi o órgão do tato e seus prolongamentos que mais frequentemente forneceram as metáforas do mediador verbal. Para classificar os animais que conhecia, primitivo reportava-se à sua maneira de locomover e distinguia os que voam, os que nadam, os que se arrastam ou andam. Quando se tratava de qualificar uma sensação que escapasse ao tato, como a cor, um sabor, um odor, foram ainda metáforas táteis que serviram de veículo, em consequência da riqueza de seu vocabulário e sobretudo do simbolismo conquistador da mão. Ainda hoje somos obrigados a expressar sensações interiores por imagens exteriores e falar, por exemplo, de um vinho rascante, ou de uma cor quente, ou de um perfume doce. Isso às vezes nos leva a expressões absurdas, mas simbolicamente justificadas e perfeitamente compreendidas, como em francês “remplir un devoir”, “ouvrir une parenthèse”, “embrasser une carrière”. (Cumprir um dever. Ao pé da letra: encher um dever, abrir parênteses, abraçar uma carreira.)

No entanto, se o meio é aproximativo, o resultado é excelente. Assemelha-se a certas máquinas, cujo sistema regulador é ajustado muito grosseiramente para suportar sem pane uma engrenagem imperfeita de suas peças, e até uma certa porcentagem de fracassos, em situações que o rigor absoluto as tornaria inutilizáveis. O mesmo se passa com o simbolismo da língua. Tanto mais vaga é uma palavra, mais e-la evoca semelhança de forma, de cor ou de gosto; mais ela é preciosa e utilizável. É o que Verlaine já havia pressentido, outrora ou há pouco, quando dizia ao poeta: Il faut aussi que tu n’ailles point choisir tes mots sans quelque méprise… (“É preciso que escolhas tuas palavras com algum desprezo”.)

Mas o desprezo era ele que o tinha. E o que lhe parecia uma fantasia de sua musa era, na realidade, uma lei da simbologia, ilustrada por todas as figuras de estilo (metáfora, sinédoque, metonímia, catacrese) e traduzindo analogias, assimilações e correspondências. É baseada no princípio de que não nos prendemos à coisa evocada pela palavra, mas ao fundo comum ao qual se liga a sua função. Podemos verificar esta lei por intermédio da etimologia.

Um dos primeiros gestos do primata foi alongar a mão para agarrar aquilo que cobiçava. Ora, todas as palavras que significam tomar querem igualmente dizer ter a inteligência de, como captar, compreender, pegar (No francês, saisir, comprendre, piger (piéger)). A palavra, o cérebro e a mão estão de tal forma ligados, que a palavra se torna a mão que executa à distância uma determinada tarefa. O verbo latino cogitare (cum-agitare), cogitar, significa originalmente “agitar juntos”, tendo acabado por significar agitar uma ideia. O outro verbo latino intelligere, compreender, significa “escolher entre”, o que é a mais exata definição da inteligência, esta escolha contínua, cálculo permanente das probabilidades. Só os que escolhem mal podem pensar que é a sorte que favorece aqueles que escolhem bem.

Ainda em latim, putare significou, na origem, cortar, talhar as árvores. Mas, fracionando os objetos, nós os contamos, de onde o sentido de contar, calcular, pesar. E, quando se pesa, avalia-se, de onde putare acabando por significar julgar e pensar.

Se existe um ato primeiro e original, ele será sem dúvida o nascimento. Em todas as línguas há uma relação estreita entre o nascimento e o co-nascimento, finalidade essencial do segundo nascimento iniciático com o qual Claudel jogou em sua Arte Poética. Essa imensa linhagem tem por raiz gen, gon, gn, de onde o latim gens, a família, depois a gênese, a genealogia. O grego gonos, a criança, deu o epígono ‘discípulo), o gineceu, o gentil (bem nascido, nobre), os verbos gerar, generalizar, a generosidade. Do latim, ingenium (espírito natural), vem o gênio, o engenheiro, engenhoso. Ainda do latim ingenuus (homem livre) deriva-se benignus (bem-nascido), de onde bento, benigno, beato e também ingênuo (fr. naif), néscio, (fr. niais), natal, noel (de novellus), ano novo.

Na linha do conhecimento expresso pelo grego gnosis, encontramos a gnose, o diagnóstico, os gnomos (gênios elementares da terra), os versos gnômicos (sentenças) e a noção. Do latim nobilis (digno de ser conhecido) derivam nobre e ignóbil (a não ser conhecido), o verbo ignorar, narrar e inenarrável.

Os linguistas discutem sobre a prioridade do aparecimento do verbo ou do nome no núcleo da nebulosa oratória. Mas como as palavras foram precedidas pela ideia comum de ação, que elas são encarregadas de expressar, o verbo acabou por encarná-la sozinho. O nome muitas vezes sai do verbo imobilizado numa atitude, como participante, ou num particípio. O gramático hindu Panini já havia reconhecido o caráter verbal das raízes e J. Grimm declarava: “Os verbos e os pronomes são como verdadeiras alavancas da linguagem”. (R. de Grasserle, que fez dessa ideia o assunto de seu livro Du verbe comme générateur des autres parties du dsicours, 1914.)

Desde as línguas antigas, em que povoam as formas verbais, até o inglês, que as substituiu por advérbios e preposições, constata-se um despojamento progressivo da expressão sem que o sentido da frase seja modificado. É o resultado de uma simplificação natural que amolda a língua ao uso. Esse despojamento mostra os elementos invariantes, revela as pulsões escondidas, das quais Humboldt havia imaginado a existência, e deixa subsistir apenas as raízes ativas que o abade Bergier há tanto tempo já havia notado como pouco numerosas.

Tentando classificar os verbos franceses em determinado número de grupos, respondendo cada um a um gesto de direção precisa, a uma atitude traduzida por uma preposição ou um advérbio, tais como com, por, para, entre, em, em volta de, a partir de, contra, acima, diante, depois, etc, chegamos a trinta e seis conjuntos que esgotam a variedade de gestos possíveis. Em cada conjunto, cada verbo aparece traduzindo um ato coletivo de estrutura idêntica e intercomunicável, o que se pode assegurar substituindo-os entre si numa frase, ainda que de fato não sejam sinônimos.

Já que há muito tempo os animais, as plantas e os minerais acabaram por ser classificados segundo sua própria estrutura, seria curioso que a linguística não se servisse do mesmo método, pois desde as origens o espírito humano procede dessa maneira. Não é de espantar, portanto, que se constate o processo na estrutura dos contos populares, dos dramas e dos mitos.

Nos seus Diálogos com Eckermann, Goethe conta que, segundo Gozzi, o dramaturgo venesiano do teatro fiabesco, não haveria mais do que trinta e seis situações possíveis. Acrescenta que, tendo Schiller se esforçado para encontrar outras novas, não conseguiu grande êxito, acabando nas mesmas trinta e seis. Não é menos notável que um etnólogo e linguista russo, V. J. Propp, num livro tornado clássico, em que enumera e desmonta o mecanismo dos contos maravilhosos, tenha reduzido a trinta e uma as funções do herói e as situações então resultantes. Como, numa narrativa qualquer, o sujeito da frase pode ser o herói do conto, ou a personagem do drama, ou o deus animador do mito, não surpreende que suas ações sejam igualmente limitadas àquelas que podemos nós mesmos realizar, e que reconhecemos nos nossos trinta e seis conjuntos, já que é sempre o mesmo sistema de símbolos que se manifesta em todos os casos. (Cf. G. Polti, Les trente-six situations dramatiques, 1895)

E não seria interessante que o número fatídico trinta-e-seis seja exatamente em francês um idiotismo indicando a passagem ao domínio do indeterminado, ao mesmo tempo que o número trinta-e-um indica, na linguagem familiar, a maior quantidade da aparência? (O trente-et-un seria uma deformação da palavra trentain, nome de uma fazenda de luxo, cujo tecido era composto de trinta centenas de fios. Isso vem confirmar a ideia de perfeição limitada atribuída a cifra 30.) (Benoist)