livre arbítrio

É o ser racional efetivamente livre ou, como Tomás de Aquino prefere dizer, tem ele o livre arbítrio? Inúmeros filósofos não o creram. Abandonando por hora seus argutos, vamos considerar as razões alegadas em favor da liberdade. Vejamos as três principais: o testemunho da consciência, a natureza mesma do ato livre e as necessidades da vida moral. O primeiro dos argumentos, que pode se prestar a equívocos, toma seu valor somente se ligado ao segundo; Tomás de Aquino, aliás, não os distingue e vamos fazer como ele

Sem liberdade não há moral. Seria conveniente desenvolver este tema que constitui, aliás, de seu ponto de vista, uni argumento bastante válido. Baste-nos citar Tomás de Aquino que em uma frase lacônica sugere todo o essencial: “o homem tem o livre arbítrio, de outro modo conselhos, exortações, preceitos, proibições, recompensas e castigos seriam coisas absolutamente vãs” (Ia Pa, q. 83, a.1).

A razão típica em favor da liberdade é tomada da natureza mesma do ato livre, tal como nos é dado na experiência, sendo esta interpretada à luz dos princípios metafísicos, os únicos que podem permitir concluir de maneira decisiva.

Desde que se trate de explicar e de fundamentar o ato livre, Tomás de Aquino recorre sempre à natureza racional do homem, ou mais precisamente e mais imediatamente, à sua faculdade de julgar: há seres que agem sem julgar, há outros que agem por meio do juízo. Se esse é o resultado de um instinto natural, como é o casa para os animais, então não há liberdade. Mas se, como no homem, resulta de uma deliberação e de aproximações devidas à razão, encontramo-nos em face de um ato livre. Uma tal prerrogativa vem de que a razão, quando relacionada a coisas contingentes, é potência de coisas contrárias. Ora, as coisas particulares, em meio às quais desenvolve-se a ação humana, são coisas contingentes, podendo portanto servir a juízos diversos e que não são determinados. É necessário, portanto, que o homem, pelo fato de ser racional, seja dotado de livre arbítrio.

“Sed homo agit judicio, quia per vim cognoscitivam judicat aliquid esse fugiendum vel prosequendum. Sed quia judicium istud non est ex naturali instinctu in particulari operabili, sed ex collatione quadam rationis, ideo agit libero judicio, potens in diversa ferri. Ratio enim circa contingentia habet vim ad opposita . . . Particularia autem operabilia sunt quaedam contingentia: et ideo circa ea judicium rationis ad diversa se habet, et non est determinatum ad unum. Et pro tanto necesse est quod homo sit liberi arbitrii ex hoc, ipso quod rationalis est”. Ia Pa, q. 83, a. 1

A liberdade tem, do lado do sujeito, seu fundamento na razão, e objetivamente no caráter contingente dos bens que se nos oferecem. Deste último ponto de vista, o argumento toma esta forma de que se reveste muitas vezes em Tomás de Aquino: face aos bens contingentes ou particulares nossa vontade permanece livre: só o bem absoluto pode determiná-la de modo necessário. Uma e outra razão, aliás, se completam, assim como a inteligência e a vontade compenetram-se na atividade humana.

A experiência ou a consciência de nossa liberdade, invocada muitas vezes sem esta demonstração, fundamenta-se exatamente sobre o caráter de não necessidade dos juízos que dirigem minha decisão: julgo que tal meio será conveniente para atingir tal fim e ME decido, mas percebo, ao mesmo tempo, que o motivo que ME faz agir não se impõe de maneira absoluta: é um bem contingente; minha escolha, por este fato, só pode ser livre. Minha consciência de agente livre é uma consciência de razão que aprecia e julga e não um sentimento de um impulso do instinto, de um empurrão no vazio, como se imagina muitas vezes

Retomando de um outro modo a precedente análise, distinguiremos no ato livre, do ponto de vista de sua indeterminação, dois aspectos, o do exercício e o da especificação. O ato livre, com efeito, é o que não é motivado pela pressão de um bem que se apresente como necessitante; mas isto se pode produzir de dois modos:

– para atingir tal fim dois meios se ME oferecem, assim para ir a tal cidade, tal ou tal caminho; nenhum dos meios, nenhum dos caminhos se ME impõe, posso escolher este ou aquele: direi que do ponto de vista da especificação meu ato é livre; mas no caso em que existisse um só caminho, não permaneceria menos livre, pois atingir tal cidade, e portanto tomar este caminho, não ME parece absolutamente necessário; posso ainda .querer ou não querer. Uma tal capacidade de escolha é chamada liberdade de exercício.

Uma e outra destas liberdades, a de especificação C a de exercício, fundam-se sobre a contingência dos bens; mas do ponto de vista do sujeito, a mais radical entre elas, e que por si só basta para que haja liberdade, é a de exercício; ela é sempre requerida para que haja liberdade, enquanto que, ao menos no caso do meio único, a especificação se ME impõe de maneira constrangedora.

Se agora nos colocamos do ponto de vista da análise psicológica do ato livre ou de seus diversos elementos, encontrar-nos-emos de novo em face de uma dualidade de atividade, a da inteligência e a da vontade concorrendo para um mesmo resultado.

Sob a pressão de um desejo que surgiu em mim persigo um fim (intentio finis). Diversos meios se ME apresentam para o atingir; delibero . . . ; o momento de ME decidir chegou: o que se produz?

Em meu juízo (judicium practicum) decido-ME por tal meio e por um ato de vontade escolho (electio). Houve, portanto, concomitantemente, um juízo da inteligência e uma escolha da vontade. Qual dos dois elementos pode ter sido determinante? Um e outro, cada um no seu ponto de vista; na ordem de especificação, escolhi porque julguei; na ordem do exercício, julguei porque escolhi. E preciso, sim, distinguir os dois atos, mas sob a condição de não esquecer que reciprocamente se de terminam. O ato livre procede ao mesmo tempo da inteligência e da vontade. Como, todavia, absolutamente falando é a escolha ou a eleição que decide, dir-se-á que o livre arbítrio encontra-se na vontade como em seu sujeito. (Gardeil)