Renan, Ernest (1823-1895)
A vida e a obra de Renan podem ser estudadas longe da polêmica e da paixão que suscitaram em seu tempo. O “escândalo Renan” e seu impacto na Igreja da França, e com efeito em toda a Igreja, pode ser explicado desde uma perspectiva da própria pessoa e da época que lhe tocou viver: o séc. XIX. Protagonizou uma das grandes preocupações de seu tempo: o antagonismo entre ciência e religião. Seu pensamento filosófico foi uma curiosa amálgama de positivismo e religiosidade, que terminou em ceticismo.
Depois de sua ruptura com a Igreja em 1845, a obra filológica, histórica e crítica de Renan inspirou-se constantemente num positivismo exaltado. “A ciência e somente a ciência pode dar à humanidade aquilo sem o qual não pode viver, um símbolo e uma lei”, escrevia em sua primeira obra O porvir da ciência (1848). Via o fim último da ciência na “organização científica da humanidade”. A religião do futuro será “o humanismo, o culto de tudo o que pertence ao homem, a vida inteira santificada e elevada a um valor moral”.
De acordo com o positivismo de Comte, o conhecimento positivo da realidade deve ter uma base experimental. Daí que o homem culto não possa acreditar em Deus. “Um ser que não se revela a si mesmo através de nenhuma ação é, para a ciência, um ser inexistente.” Na opinião de Renan, o Deus pessoal e transcendente da fé judaico-cristã ficara privado de toda base racional pelo desenvolvimento da ciência. Ficava somente o saber positivo acerca do mundo, obtido por meio das ciências naturais e de investigações históricas e filológicas. A ciência, em seu sentido amplo, substituíra a teologia e a metafísica como ciências de informação sobre a realidade existente. Dada a inverificabilidade do absoluto, Renan deriva para o ceticismo no campo religioso: “Não podemos conhecer o infinito, nem sequer se há ou não infinito, nem tampouco podemos estabelecer se há ou não valores objetivos absolutos”.
“A verdade é que podemos atuar como se houvesse valores objetivos e como se existisse um Deus.” “A atitude mais lógica do pensador ante a religião — diz — é proceder como se fosse verdadeira. Deve comportar-se como se Deus e a alma existissem. A religião entra assim na esfera de outras muitas hipóteses, como o éter, os fluidos elétrico, luminoso, calórico, nervoso e mesmo o átomo, dos quais sabemos perfeitamente que somente são símbolos, meios cômodos para explicar fenômenos; mas que, não obstante, mantemos”.
Essas ideias Renan levou-as ao campo do seu trabalho: o estudo da história, “verdadeira ciência da humanidade”. Assim seus primeiros estudos sobre Averróis e o averroísmo (1852) tendem a demonstrar que a ortodoxia religiosa impede, entre os maometanos, a evolução do pensamento científico e filosófico. Sua História das origens do cristianismo, composta de seis volumes, escritos entre 1863-1881, baseia-se inteiramente no pressuposto de que as doutrinas do cristianismo não podem ser valorizadas do ponto de vista do milagre ou do sobrenatural, mas como a manifestação de um ideal moral em perfeito acordo com a paisagem e com as condições materiais em que nasceu. O primeiro volume desta história é sua famosa Vida de Jesus (1963), na qual colocou um importante prólogo em 1866, quando alcançou a 13a edição. Fiel a seus princípios de rejeitar toda ideia que suponha “mistério”, “milagre” ou “intervenção sobrenatural” nos processos religiosos, Renan apresenta em Jesus o “homem incomparável”, negando-lhe, porém, a condição de Filho de Deus. “Quaisquer que sejam os fenômenos que se produzam no porvir, ninguém sobrepujará a Jesus. Seu culto se rejuvenescerá incessantemente; sua lenda provocará lágrimas sem conta; seu martírio despertará a ternura nos melhores corações e todos os séculos proclamarão que entre os filhos dos homens não há nenhum nascido que se lhe possa comparar” (palavras finais da Vida de Jesus). “Aquela amálgama confusa de pressentimentos, aquela alternativa de decepções e de esperanças, rejeitadas incessantemente pela odiosa realidade, tiveram seu intérprete no homem incomparável a quem a consciência universal concedeu com justiça o título de Filho de Deus, posto que ele fez dar à religião um passo ao qual não pode e não poderá provavelmente comparar-se a nenhum outro” (Vida de Jesus, c. 1).
A obra, como se sabe, foi violentamente atacada pela Igreja de seu tempo. Jesus ficava reduzido a um amável messias, pregador de uma mensagem de suprema moralidade, mas despojado de seu mistério profundo de salvador e verdadeiro Filho de Deus. O cristianismo era apresentado como uma evolução natural dos desejos e ânsias de Israel de perfeição e justiça. Nada mais.
Na mesma linha colocamos sua História do povo de Israel, obra em cinco volumes, sendo que os dois últimos apareceram depois de sua morte (1887-1893). Nela demonstra como se formara entre os profetas uma religião sem dogmas nem cultos. Por isso, “embora o judaísmo desaparecesse, os sonhos de seus profetas se tornariam verdadeiros, de forma que, sem um céu compensatório, a justiça existirá sempre na terra graças a eles”.
Temos de dizer, no entanto, que não foi o positivismo nem o ceticismo que mereceram as críticas e os aplausos a Renan. Foi seu estilo: “Essa capacidade de passar de um juízo a outro… essa atitude característica de aparentar saber tudo, e não ficar com nada, que o leva a rir e a duvidar de tudo, e a manter o ceticismo como a posição filosófica mais segura”. Teve o segredo de saber levar às massas e aos homens cultos de seu tempo tanto a desmistificação sobrenatural de Cristo e do cristianismo quanto a beleza suprema de sua pessoa e de sua doutrina na história da humanidade. Renan foi uma bandeira que arrastou amigos e inimigos, pois os interesses que representava eram definitivos para ambos.
BIBLIOGRAFIA: Oeuvres completes de E. Renan, 10 vols. Edição de Henrriette Psichari, 1947; J. Pommier, La pensée religieuse de Renan, 1925; H. W. Wardman, E. Renan: A criticai biography, 1964. (Santidrián)