De fato, entre todos os seus modelos para a Criação, o que Boehme desenvolveu mais plenamente foi o da “Sabedoria Divina”. Nos primeiros séculos da Igreja, os cristãos fizeram da Sabedoria de Deus (latim sapientia, grego sophia) um princípio central de suas crenças. Muitas passagens nas Escrituras se referem à Sabedoria de Deus ou “Sophia” como um aspecto feminino de Deus (Provérbios 1, 2, 8; Eclesiastes 7, 8; Sabedoria de Salomão 1, 6, 7, 8, 9; Jesus Siraque 24) e alguns Pais da Igreja acreditavam que ela era uma pessoa feminina na Divindade, ao lado de Deus Pai, Cristo e o Espírito Santo. Na Idade Média, a Igreja Católica entendia Sophia simplesmente como a “sede da Sabedoria de Deus” (sedes sapientiae). Como “Sophia” parecia ser uma ameaça à Trindade (totalmente masculina), ela era frequentemente transformada em obras de arte e em escritos em um “aspecto” da Virgem Maria ou do Espírito Santo, ou então era misturada com representações de Minerva, a antiga deusa romana da sabedoria. No início do período moderno, esculturas de “Sophia” frequentemente adornavam conventos, mas também tribunais, para simbolizar que a Sabedoria de Deus estava atuando nesses contextos. Sermões sobre as boas obras da Sabedoria eram frequentemente realizados em celebrações universitárias ou nos funerais de acadêmicos ou nobres sábios. Sua presença na Bíblia a tornava onipresente, mas ela era geralmente retratada como o aspecto celestial da Virgem Maria, e não como parte da própria Divindade. Boehme conhecia essa tradição, provavelmente por meio de textos místicos, já que usa Sophia como um meio para sua filosofia natural, mas ainda assim a mantém firmemente na tradição da veneração de Sophia-Maria.
Sophia é outro dos modelos de Boehme para a produção cósmica da natureza: “A Sabedoria é a Palavra transbordante do poder divino […] dentro da qual o Espírito Santo forma e molda o entendimento divino na Sabedoria […] tudo está dentro dela como imaginação divina […] como uma pessoa que se olha em um espelho” (Clavis 5.18f.). Aqui, Boehme se baseia na ideia tradicional da Sabedoria Divina como um espelho que faz a mediação entre Deus e a humanidade (figura abaixo). No pensamento de Boehme, esse “espelho” divino ocupa uma posição-chave, porque é a função reflexiva de Sophia que primeiro leva à própria consciência de Deus como um ser distinto. Naquela primeira “olhada” momentânea no “espelho”, o “Nada” indeterminado se tornou um “Eu” — nesse momento, Deus, o Pai, passa a existir. Boehme está ciente das passagens das Escrituras, como Provérbios 8, que declaram que a Sabedoria estava com Deus desde o início, por isso a torna presente no surgimento de Deus Pai, enquanto Ele está nascendo por meio da Sabedoria.