Nicholson (RNPS:31-33) – Iblis

Por mais estranho que possa parecer, Hallaj, que encontrou seu modelo de vida santa em Jesus Cristo, celebra como expoentes da verdadeira doutrina mística da Unidade Divina não apenas o Faraó, mas especialmente Iblis, o Diabolus maometano. O Alcorão, como você deve se lembrar, conta em vários lugares como Deus ordenou que os anjos adorassem Adão e como Iblis — seu nome na época era ‘Azazil — recusou, dizendo: “Sou mais excelente do que ele: Tu me criaste do fogo e a ele do barro”; então Deus o amaldiçoou e o lançou no inferno. Do ponto de vista unitarista, adorar Adão, mesmo que ele seja considerado a imagem divina, é idolatria, e Hallaj não foi o primeiro defensor do Diabo no Islã. De acordo com ele, se Iblis desobedeceu à ordem divina, foi apenas porque não reconheceria nenhum objeto de adoração, exceto o Deus Único. Quando Deus o ameaçou com o castigo eterno, Iblis perguntou: “Não me contemplarás enquanto estiveres me castigando? “Deus respondeu: “Sim”. “Então”, disse Iblis, “o fato de Tu me contemplares tirará de mim a consciência do castigo. Faze-me como quiseres!” E em outro diálogo, Iblis, ao ser repreendido por Moisés por sua desobediência, responde: “Não foi uma ordem, foi uma provação”, ou seja, um teste de sua devoção a Deus. Assim, Hallaj pode fazer Iblis dizer: “Ao me recusar a obedecer a Ti, Te glorifiquei” (juhudi laka taqdis), e pode declarar que Iblis e o Faraó são seus “amigos e professores”.

“Se vocês não reconhecem Deus”, diz ele, “pelo menos reconheçam Seus sinais. Sou este sinal, sou a Verdade Criativa (Ana l’Haqq), porque por meio da Verdade sou uma verdade eternamente. Meus amigos e professores são Iblis e o Faraó. Iblis foi ameaçado com o fogo do inferno, mas não se retratou. O Faraó foi afogado no mar, mas não se retratou, pois não reconhecia nada entre ele e Deus. E eu, embora seja morto e crucificado, e embora minhas mãos e pés sejam cortados, não me retrato!”

Mas Hallaj, observe-se, embora elogie o auto-sacrifício (futuwwat) demonstrado por Iblis ao defender a Unidade Divina, condena-o por desobedecer à ordem Divina. Iblis justificou sua desobediência com o argumento de que sabia que ela estava predestinada. Deus ordenou que ele adorasse Adão, mas quis que ele recusasse; caso contrário, ele deveria ter obedecido, pois Deus não quer nada que não aconteça. Hallaj, por outro lado, insiste que a obediência é um dever sagrado. A ordem (amr) é eterna, enquanto a vontade (mashiyyat) e a presciência de Deus com relação a ela, se será obedecida ou desobedecida, é criada e, portanto, subordinada. Deus deseja tanto o bem quanto o mal, mas ordena apenas o bem. Ele nos ordena a fazer uma coisa e sabe que não podemos fazê-la; quer que pequemos, mas não quer que pequemos por nossa própria culpa. Hallaj, como diz Massignon, compreendeu profundamente a amargura do dilema, que afirma em um verso citado por Ibn Khallikan:

Deus o lançou ao mar, com os braços amarrados atrás das costas,
E lhe disse: “Cuidado, cuidado, para não ser molhado pela água!”

Essa poderia ser a palavra final de Iblis, que, fingindo ter lido o segredo da Providência Divina, se desesperou. Hallaj, no entanto, sabia que a essência de Deus é o Amor, e que a essência do Amor é sofrer sem pedir motivos. Cabe ao verdadeiro santo voltar-se para Deus em humilde adoração e esforçar-se de todo o coração para cumprir a ordem divina, não importando o custo do sofrimento para si mesmo. Esta, aparentemente, era a essência do ensinamento religioso de Hallaj, pelo que podemos julgar pelos testemunhos preservados por seus discípulos.

al-Hallaj, Reynold Alleyne Nicholson (1868-1945)