Os Demônios (2) (Arendt)

ARENDT, H. Pensar sem corrimão: Compreender (1953-1975). Rio de Janeiro, RJ: Bazar do Tempo, 2021.

No segundo plano, que de forma geral é o aceito, Os demônios é uma explicação ou profecia do que realmente aconteceu: o ateísmo provocaria a queda do regime czarista. O ateísmo erodiu um governo cuja autoridade se assentava “na graça de Deus” e que perdeu legitimidade quando os homens deixaram de acreditar em Deus. Chátov declara que “Para começar uma rebelião na Rússia, é preciso que se comece forçosamente pelo ateísmo”. E o mesmo pensamento é expresso de forma mais simples pelo atormentado capitão, que exclama: “Se não existe Deus, então que capitão sou eu depois disso?”. Além do mais, o ateísmo está conectado com as ideias ocidentais; o Ocidente, já corrompido, segue para corromper a Rússia – através do marxismo. A única resistência é a dos eslavófilos, para quem a Rússia era a única esperança: o povo russo ainda é crente, embora os intelectuais não mais o sejam. Apesar da simpatia que transparece na descrição, Dostoiévski apresenta de forma muito realista o desprezo que esses amantes “do povo” na verdade tinham pelo povo, sobretudo pelo povo russo.

Um dos principais representantes dessa interpretação é Berdiáev (As fontes e os sentidos do comunismo russo): a revolução ocorreu em um primeiro momento internamente, com a indicação de que a revolução externa estava a caminho. Desde então, a Dostoiévski é atribuído “um talento de previsão que beira o demoníaco”. De verdade nisso há pelo menos o fato de que o ateísmo elimina o medo do inferno, e o medo do inferno foi, por muitos séculos, o fator mais poderoso para evitar que o homem praticasse o mal. Mas com Dostoiévski a questão é um tanto diferente: sem acreditar em Deus, tudo é permitido. Em todo caso, o fato é que Piotr Vierkhoviénski-Nietcháiev é estranhamente parecido com Stálin: ele “nunca esquece uma ofensa”, encoraja “a espionagem entre os membros” do quinteto, o “despotismo ilimitado” do sistema Chigalióv. Os membros do quinteto são informantes potenciais – Lipútin com “sua marcada inclinação para o trabalho policial”, Lebiádkin e, sobretudo, o próprio Vierkhoviénski. Quanto a Stálin, as semelhanças são evidentes, e até mesmo extraordinárias – como se o Catecismo de Nietcháiev, que Stálin certamente conhecia, tivesse servido de modelo para si próprio.

 

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