Pessoa: Átrio

Excertos do espólio de Fernando Pessoa contido no livro «Fernando Pessoa e a filosofia hermética», org. por Yvette Centeno.

FM (Atr).

Sentido moral: regra de vida; dever de se conservar fiel ao que se jurou, etc.

Sentido histórico: A abolição da Ordem do Templo Consequências.

Sentido filosófico: o que sucede a todos os Exemplares.

Sentido religioso: a unidade de todas as religiões na figuração igual do Deus sacrificado e ressurrecto (em outro aspecto, e em nós)?

  • Sentido místico: o M. (linguagem, por exemplo, do budismo esotérico) quer dizer Ego intimo. É morto pelo Mundo, a Carne e o Diabo, mas ressurge dessa falsa morte, pois que não foi ele que morreu mas a sua «figura».
  • Nos sentidos 1 a 4 da E. vê-se o mesmo símbolo a desdobrar-se cada vez mais, mas sempre no mesmo caminho e sentido. O sentido 1 aplica-se diretamente à Ordem direta; o 2 à origem da Ordem; o 3 ao sentido geral que tem esse sentido; o 4 ao sentido supremo que tem esse sentido 3. (Há que não esquecer que, no sentido 2, o M. significa a O. do T. e não o G.M. dela, que aparece no sentido 3.)
  • Nos sentidos 1 a 4 da D. o mesmo sucede No 1 o M. est anima. No 2 est Deus. No 3 Ch. est. (ex.) O 4 não se conhece.

(Esp. 53-78)

Átrio

A expressão «vale», de que se usa para definir o logar das instituições m-cas, é um ato de humildade e verdade que a Ordem seguiu por indicação superior. É a definição da baixa qualidade da iniciação que ela ministra, em relação á alta iniciação, nas Altas Ordens, referida sempre a uma montanha, seja a de Heredom, seja a de Abiegno. Pode bem ser que estas coisas nunca houvessem sido combinadas em palavras, mas ficaram certas nos factos. Em tudo qualquer coisa de superior dirigiu e firmou.

Em meio disto tudo, ha desvios e erros. Intervém, umas vezes, a especulação não-iniciada, outras a especulação claramente fraudulenta. Mas nem uma nem outra, nem outras que diversamente participam de uma e de outra, conseguem obliterar, para quem saiba ler as pistas, o caminho essencial para o Magno Fim. E é evidente para todos: desde que a Palavra se perdeu, quantos maus caminhos e fingimentos de caminho não haverá que encontrar na sua busca? Ainda os que mentem, mentem por devoção a um anseio de busca. Ainda os que viciam, viciam para, fingindo que encontraram, satisfazer a sua sede de encontrar. O filtro da Palavra Perdida tornou-os seus amantes, e seguem atrás dela, cavaleiros errantes sem dama certa, por vias e florestas de sonho e erro, na eterna selva escura do conseguimento imperfeito.

(Esp. 53B-77)

Átrio

No espirito confuso de muitos a Kabbala tem a preeminência de uma verdade. A Kabbala, porém, não é necessariamente uma verdade. Pode sê-lo; pode não sê-lo. É tão somente uma especulação metafísica feita sobre dados mais completos do que os que o filósofo profano ordinariamente tem. É sujeita aos mesmos perigos de erro e de ilusão que as especulações profanas, pois as melhores premissas não dão aos especuladores a lógica ou o entendimento com que delas forçosamente extraiam melhores conclusões. Trabalhando sobre os dados mortos do mundo visível, pôde Kant, por sua qualidade de gênio, chegar-se mais à verdade do que o Rabbi Akiba, que tinha o poder de trabalhar sobre os dados vivos do mundo invisível.

Toda a vida é uma simbolologia confusa.

(Esp. 53B-79)

ATRIO.

O caminho dos símbolos é perigoso, porque é fácil e sedutor, e é particularmente fácil e sedutor para os de imaginação viva, que são precisamente os mais fáceis de induzir-se em erro e, também, de romancear para os outros, formando fraudes por vezes inocentes, por vezes um pouco menos que isso. Nada ha mais fácil que interpretar qualquer coisa simbolicamente; é ainda mais fácil que interpretar profecias

Sucede, ainda, que os grandes símbolos são relativamente simples, prestando-se assim a uma série infinita de interpretações. Figure-se o leitor, imaginando, quantos valores simbólicos se não poderão atribuir ás duas colunas no átrio do Templo de Salomão, ou, aliás, a quaisquer duas colunas em qualquer parte. Tudo quanto, na vida ou no sonho, é composto de uma dualidade — e quase tudo na vida ou no sonho envolve uma dualidade qualquer —, tudo isso se pode supor simbolizado por aquelas duas colunas Elias, porém, não podem destinar-se a simbolizar tudo quanto se queira. Algum, ou alguns, hão de ser os veros sentidos íntimos delas. O que se pergunta, pois, é isto: que critério temos nós para determinar, entre tantos símbolos possíveis, quais são os que são deveras aplicáveis, os verdadeiros?

Para isto existe o critério do quíntuplo sentido: cada coisa tem, na simbólica, cinco sentidos; e esses cinco sentidos estão uns dentro dos outros, sendo cada um o desenvolvimento do anterior. Quando Pike diz que ha, para a maioria dos símbolos maçônicos, quatro atribuições distintas, diz bem, pois, como é de ver, exclui o sentido literal, ou profano, que é o primeiro dos cinco e não entra na consideração dele. Quando, porém, passa a dizer que um é o sentido moral, outro o politico, vai mal, pois que o sentido politico, não é o desenvolvimento do sentido moral, mas uma coisa de outra ordem.

(Esp. 53B-80)


ÁTRIO.

Compõe-se este livro de uma série conexa de especulações ociosas sobre a matéria que possa haver para um profano no que se conhece dos símbolos e seus modos da Fr. M.

(Esp. 53B-81)

Átrio

Os caminhos do simbolismo, sobretudo desde que se entra na estrada mística ou interpretativa, são cheios de ilusões, de devaneios e de fraudes. O profano a eles não sabe em que fundar-se do que lê nos autores da especialidade, de tal modo se misturam, nas obras de quase todos eles, o sentido certo, a fantasia delirante e a fraude consciente e semiconsciente E isto é extensivo ás próprias personalidades dos mistos e dos epoptas antigos e modernos. É fora de duvida que Cagliostro era um charlatão; mas não é menos fora de duvida que era também, e paralelamente, um alto iniciado. É fora de duvida que Madame Blavatzky era um espirito confuso e fraudoso; mas também é fora de duvida que recebera uma mensagem e uma missão de Superiores Incógnitos. Nos nossos dias ha um exemplo estrondoso da mesma mistura (NOTA: provavelmente tratar-se-ia de Aleister Crowley); não o cito explicitamente por motivos fáceis de compreender

Estas coisas desorientam os profanos, e ainda mais os sinceros que os curiosos. É natural que o individuo, dentro ou fora da O. M., que saiba que o REAA — que nem é e. nem ant. nem ac. — é baseado numa complexa sobreposição de fraudes, incluindo um diploma falsificado, imediatamente conclua que todo o rito é da mesma ordem e do mesmo valor que esses seus títulos. Esta conclusão seria errônea Ha muito de valia no rito, mas o pior é que o elemento fraudulento se introduz na própria substancia da estrutura dos graus e dos rituais, de sorte que só quem tenha conhecimentos superiores aos que o rito inteiro ministra pode, em certo modo, destrinçar o que está certo do que é falso ou errado; e, pela natureza das coisas, os que estão passando através do rito raras vezes terão graus ou conhecimentos que excedam o conteúdo dele e portanto os habilitem a conhecer o caminho.

(Esp. 53B-82)

Átrio

Cada religião é um mundo aparte, mas mais particularmente o é quando é essencialmente iniciatória Isto é, uma religião composta de mistérios, no conhecimento dos quais se sobe por grados, é uma especie de nova região por onde se a alma transforma.

Isto é eminentemente verdade da FM, que é a única religião moderna de tipo iniciatório puro. Nas outras os graus são estados de emoção; nesta são estados de entendimento, e até o são para o profano, se ele consegue — pois isso não é impossível — entrar, por meio de fio próprio, no labirinto dos seus segredos.

É, de facto, uma vida nova, e uma alma nova, a que se ganha no contacto com estes mistérios, e o modo, o tipo, a forma dessa vida nova, não se pode expor nem explicar, pois como é vida propriamente, e não propriamente ideia, não é transmissível verbalmente, nem ainda pelas palavras que claramente dissessem os seus mistérios, se tais palavras se devessem, ou sequer pudessem, dizer ou escrever.

Os grados são essencialmente estados; se o não são, nada são.
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Os graus de iniciação representam estados de conhecimento que são simultaneamente estados de vida.

Os primeiros graus são graus de provação, os segundos graus de interpretação, os terceiros graus de compreensão, os quartos, e últimos, graus de reintegração (integração). Na via maçônica estes quatro tipos de graus estão perfeitamente divididos, salvo que os últimos, como até certo ponto os terceiros, estão já fora dela, sendo ela todavia o caminho para eles

É isto que na simbólica dos alquimistas se designa pelos quatro–estados da Grande Obra — putrefacção, pois o iniciado tem que morrer para si mesmo, ou, antes que morrer-se (incompleto no texto).

(Esp. 53B-83)

Átrio

No ultimo e excelso sentido, a Loja é o arcano ou arca da Verdade. O Mestre e os Dois que estão com ele no governo da Loja são o símbolo das Três Verdades fundamentais ou cabalísticas. Os dois que, com estes três, formam os Cinco que completam a Loja, são símbolo dos Dois princípios externos ou de Relação, per meio dos quais a Verdade não é Erro. E os outros dois, per meio dos quais a Loja fica perfeita, são os símbolos dos Dois últimos princípios, per meio dos quais a Verdade pode descer ao nosso conhecimento, se nós soubermos subir a ela

Os três princípios que formam a Loja são: (1) Jehovah não é Deus, (2) Adam não é Homem, (3) Eva nunca existiu. Os dois princípios que completam a Loja são: (4) No principio foi (ou era) o Verbo, (5) E o Verbo se tornou Carne. Os dois últimos princípios, pelos quais a Loja se torna perfeita, são: (6) O que está em cima é como o que está em baixo, e (7) Quando o discípulo está pronto, o Mestre está pronto também.

(6) De Deus nascemos, em Jesus morremos, pelo Spirito Sancto ressurgimos, (7) Bendito seja Deus nosso Senhor, que nos deu o Verbo.

Assim, em seu intimo e verdadeiro sentido, exposto entre nevoas para que se perca quem não sente o caminho, se descobre a verdade da F.M., como um Magno Mistério Cristão

1 ou, Em Deus somos entrados, em Jesus passados, pelo Spirito Sancto erguidos.

Na FM não estão, é certo, tão patentes os mistérios sagrados como no Rito Latino, nem ha grau ou ordem nela que atinja a altura em que está o Pontífice Romano. Mas assim como a Rocha de Pedro é um dos Símbolos da Verdade, assim o é a Maré de Paulo — outro modo, devidamente entendido da Scylla e da Charybdes, a rocha e o redemoinho, entre os quais singra a Realidade material, na velha simbologia pagã.

(Esp. 53B-84)

A grande regra do Oculto é aquela do Pymandro de Hermes: «o que está em baixo é como o que está em cima». Assim, a organização das Baixas Ordens copia, guardadas as diferenças obrigatórias, a organização das altas ordens; reproduzem-se os mesmos transes, por vezes as mesmas espécies de símbolos; o sentido é outro e menor, mas a regra da semelhança tem que ser mantida, pois, de contrario, a ordem menor não vive e abatem, por si, as colunas do seu templo. Parece, ás vezes, que é dos graus simples que se desenvolvem os altos graus, e que foi nos altos graus que as altas ordens foram buscar (alargando o sentindo) os seus áditos e cursos. Não é, porém, assim. Vemos o caminho como o trilhamos, mas foi de lá para cá que ele foi construído. E, de facto, as altas ordens começaram por fabricar os graus simples, convertendo certos grêmios profanos em templos menores por um processo emblemático, a princípio fechado, como um leque, depois gradualmente abrindo-se, como esse mesmo leque que se abrisse, ou, talvez, que abrissem. Mais tarde, e foi esse a espécie de abrir o leque que revelou os desenhos nele — se bem que o exato entendimento das figuras não possa ser dado só com vê-las — e assim permitiu que os altos graus se formassem por evolução intima, emblemática, ou especulativa, dos graus da base ou fundamento. De modo que, quando, depois ainda, de alguns altos graus, e em virtude do ensinamento contido neles, algumas altas ordens se fizeram ou foi permitido que se fizessem, não houve nisso, no fundo e no intimo, mais que uma Devolução, o regresso à origem, a Reintegração, como também se diz.

O sentido profano é como o tacto das coisas, obscuro e material; e alegórico como o gosto, que é um tacto intimo, material ainda mas; o moral como o olfacto, que é o gosto desfeito, mentalizado, entendido na sua essência e na definição de que o deu; o espiritual como o ouvido

Só no divino, que não podemos ter, sendo homens, se atinge a plenitude do conhecimento, já sem tacto, sem contacto, sem que é representado pela vista.

Se isto for compreendido, e, sobretudo, meditado, haverá entendimento de muitas coisas.

(Esp. 54A-29)

Oc.

O arranjo e a estrutura das ordens iniciáticas baseiam-se numa disposição simbólica do Templo de Salomão.

Nesse esquema simbólico, entende-se que o Templo é construído da seguinte maneira. É dividido em três partes, num andar só. Abre com um Átrio, para o qual se entra por um Limiar, e logo na entrada do Átrio estão duas colunas Este Átrio é quadrado quanto à sua superfície, mas em altura, pé direito como se costuma dizer, tem o dobro da largura ou do comprimento.

Desse Átrio se passa para uma outra parte, chamada Claustro, e também Câmara do Meio; esta expressão deve, porém, ser evitada, pois colide com a expressão igual, usada na Maçonaria, que serve de designar outra especie de sala, não no andar térreo, e que, portanto, no presente esquema não figura. A passagem do Átrio para o Claustro chama-se o Transepto.

O Claustro é como que o Átrio deitado; isto é, o tecto, ou altura, baixa a metade do que era no Átrio, e o comprimento sobe ao dobro, ficando a largura a mesma.

Do Claustro se passa para o Sacrário, e a passagem de um para outro se chama o Adito O Sacrário é inteiramente cubico: tem a largura e o comprimento, iguais, do Átrio; tem a altura, igual a qualquer dessas, do Claustro.

Todas estas medidas têm um sentido simbólico, e qualquer, que saiba meditar, poderá chegar perto de o descobrir. Deverá reparar em que o Átrio e o Claustro são a mesma coisa imperfeita em posições diferentes, mas que o Sacrário tem tudo igual e perfeito, nenhuma dimensão predominando sobre outra. Ali se atinge, neste esquema de arquitectara mística, a perfeita harmonia, ou, em outra linguagem, a paz.

Segundo este esquema se organizam, como disse, as ordens iniciáticas, mas deve entender-se que, não havendo em muitos dos que nelas figuram ou mandam o conhecimento perfeito do que fazem, resultam contradições com as formulas do Templo, e essas ordens são, portanto, ilícitas. São o, importa que se diga, na maioria dos casos.

As Ordens do Átrio, que servem de ministrar os primeiros conhecimentos do que está oculto, e que são pois, por assim dizer, a instrução primaria da iniciação, seguem a lei que lhes é imposta pela primeira presença do Átrio, que são as duas colunas que nele se encontram. Quer isto dizer que ha duas ordens do Átrio, e só duas. Uma delas é a Maçonaria. Não direi qual é a outra. Não deixarei, porém, de dizer, para que o compreenda quem possa, que a Maçonaria corresponde à coluna da esquerda do Átrio, isto é, a que nos fica à direita se olhamos para o templo. A coluna da direita corresponde a outra Ordem, a irmã e complementar da maçônica

Seguem-se, passado o Transepto— ou regularmente, por iniciação plenária em qualquer das duas ordens citadas; ou irregularmente, por contacto direto com os Altos Iniciadores, e sem necessidade portanto de passar por qualquer dessas ordens — as chamadas Ordens do Claustro, ou Altas Ordens. Mais tarde, passado o Adito, e do mesmo modo regular ou irregularmente, se atingem as Ordens do Sacrário, ou, em termo mais vulgar, do Templo, pois que, atingido o amago do Templo, o mesmo Templo se atinge, em todo o seu sentido.

As Ordens do Átrio iniciam por meio de símbolos (a Maçonaria) ou de linguagem simbólica (a outra ordem). Tudo quanto nelas se explique, ou se revele, é só em aparência que se explica ou se revela. O que ha de válido nelas é os símbolos: os discursos, as interpretações, ou são da superfície, e portanto profanos (quando menos o pareçam); ou são falsos, e feitos para despistar os iniciados nos graus, quando sejam incompetentes para eles lhes serem conferidos; ou são, por sua vez, simbólicos, sendo, quer o mostrem ou não, como uma decifração que está numa segunda cifra.

As Ordens do Átrio, a quem é dado um símbolo, ou explicação simbólica, central, a que se chama a Formula do Limiar, culminam, para os que verdadeiramente aproveitam da iniciação simbólica, e nela conseguem ler o que ela é, numa nova formula, comunicada fora dos rituais, a que se chama a Formula do Transepto. Por meio dela se obtém o acesso ás Ordens do Claustro, ou Altas Ordens, ou ao que irregularmente a elas seja par.

As Ordens do Claustro, ou Altas Ordens, não iniciam, porém em explicações de símbolos, mas tão somente conferem aos seus iniciados as chaves herméticas, por meio das quais, se eles souberem applicá-las, os símbolos do Átrio, a Formula do Átrio, poderão ser entendidos. Isto é, ao passo que no Átrio os símbolos (os regulares, bem entendido) estão certos e firmes, mas são desvios os discursos e interpretações, nas Ordens do Claustro, os símbolos (se os ha) são indiretos e desviados, sendo contudo certas e firmes as explicações dadas, e que se não aplicam a esses símbolos

Passado o Adito, as verdades do Átrio e as do Claustro, opostas entre si, unem-se numa mesma verdade. Mas aí a iniciação é plenária, divina, e não se pode dar ideia dela por meio de quaisquer palavras, qualquer que seja a linguagem, direta ou indireta, que se lhes faça falar

Tudo isto, que será sempre confuso para muitos, ainda que claramente se exponha, pode talvez ser ilustrado por um exemplo. E esse exemplo será o de como se escreve um ritual através das três ordens.

Suponhamos os Mestres ou Sacerdotes de uma Ordem do Templo, de posse, como tais, de uma verdade divina, e suponhamos que essa verdade é a do Verbo incarnado e sacrificado para a redenção do Mundo. Suponhamos, ainda, que esses sacerdotes, de posse dessa verdade real e não simbólica, vivem num mundo pagão, crente nos deuses múltiplos da religião grega ou romana. Suponhamos, mais, que esses mestres da doutrina secreta querem comunicar aos que o mereçam, por provarem que merecem, a doutrina secreta de que são senhores. Formarão para isso Mistérios, ou Iniciações. E, na formação do ritual desses Mistérios, procederão da seguinte maneira.

Buscarão, primeiro, entre os deuses pagãos qual é aquele cuja historia possa conformar-se, como a sombra ao corpo que a projeta, à vida e à morte do Verbo. Encontrarão, por exemplo, Baco, em cuja historia divina ha analogias evidentes com a do Verbo incarnado, ainda que em nível diferente, que é o que é preciso. Redigirão uma formula em que, eliminando os acidentes que perturbem a semelhança, consigam dar, na historia de Baco, por símbolo e analogia, a historia do Verbo. E esta formula, uma vez encontrada, chamar-se-á a Formula do Transepto. Nela está obtido o segredo supremo da Ordem ou Mistério a criar, mas o verdadeiro segredo está guardado por eles, altos iniciadores, pois o que vão transmitir como verdade suprema nesse mundo pagão é ainda uma sombra da verdade.

Feito isto, prosseguem. E buscam então uma figura, real ou mítica, para quem possam transpor os incidentes, não já da vida e da morte do Verbo, mas da vida e da morte de Baco. Qualquer figura servirá, desde que nela não haja baixeza, e o que com ela se passa possa atrair de uma maneira indireta; e será preferível uma figura, ou inteiramente mítica, ou de quem tão pouco conste na historia, que tudo que se queira se lhe possa sem risco ser atribuído. Para essa figura transpõem os pormenores da vida e da morte de Baco, em maneira translata — isto é, a figura não pode ser de um Deus, nem de qualquer modo revelar que oculta a de Baco. Haverá mais intimo afastamento entre esta figura e a de Baco, que entre a de Baco e a do Verbo. Obtida esta figura, faz-se a equivalência da sua vida e morte, com a vida e a morte de Baco; e é em torno desta figura, duplamente simbólica, que se escreve o ritual. Assim, todo o ritual é o símbolo de um símbolo, a sombra de urna sombra. E é a esse ritual, que por iniciação se comunica aos candidatos, que se chama a Formula do Limiar.

(Esp. 54A-88/90)

Fernando Pessoa (1888-1935)