Rumi (FF:C4) – a única coisa necessária

Um dos ouvintes disse: “Esqueci algo aqui”. O mestre disse: “No mundo só há uma coisa que não se pode esquecer. Pouco importa se esqueces todo o resto, desde que essa coisa não seja esquecida. Porém, se te lembras de tudo, se realizas tudo, e nada é omitido, a não ser essa única coisa, não realizaste nada. Por exemplo, um rei envia-te a um certo vilarejo para executar uma determinada ordem, e te pões a executar centenas de outras tarefas, sem realizar a missão de que foste encarregado: então nada realizaste. Assim, o homem veio a este mundo para efetuar uma missão; essa missão é seu verdadeiro objetivo: se não a realiza, na verdade, nada fez. Propusemos o Encargo aos céus, à terra e às montanhas; recusaram-se a realizá-lo e tiveram medo, ao passo que o homem assumiu a responsabilidade: mas ele é ímpio e ignorante. Esse encargo, foi proposto aos céus, mas não puderam aceitá-lo. Observa quantas obras vêm do céu, são tantas que até a razão se espanta: transforma as pedras em rubis e cornalinas, e as montanhas em minas de ouro e prata, faz brotar as plantas da terra, lhes dá vida e transforma tudo no paraíso do Éden. A terra também recebe sementes e dá frutos, ela encobre as falhas e revela milhares de maravilhas inexplicáveis. As montanhas também produzem variadas minas. Operam todos esses mistérios, mas há algo que são incapazes de realizar. Só o homem é capaz de realizá-lo. Deus disse: Enobrecemos os descendentes de Adão. Ele não disse: “Enobrecemos o céu e a terra”. O homem faz coisas que os céus, a terra e as montanhas não podem realizar. Quando as realiza, é poupado da ignorância e da perversidade.

Se dizes: “Não realizo essa tarefa, mas faço bem outras coisas”, é como se transformasses um sabre indiano de aço precioso, vindo do tesouro do rei, em uma faca de açougueiro para cortar carne putrefata, e dissesses: “Não inutilizo esse sabre, eu o uso para coisas úteis”. É como se tivesses uma panela de ouro, de tão grande valor que com uma de suas partes fosse possível ter cem panelas comuns, e nela pusesses nabos para cozer. Ou ainda, é como se enfiasses na parede uma faca de aço da melhor qualidade, como se fosse um prego para pendurar uma cabaça quebrada, e dissesses: “Faço bom uso da faca, ela serve para pendurar a cabaça. Caso contrário, ela não teria nenhuma utilidade”. Nesse caso, não devemos escarnecer e rir? Pois convém pendurar a cabaça em um prego de ferro ou madeira que não custa quase nada. Não é ridículo servir-se de uma faca tão valiosa para tal uso? Deus, o Altíssimo, te concedeu algo muito valioso. Ele disse: Deus comprou dos crentes seus bens e suas vidas para lhes conceder o Paraíso.

És mais precioso que o céu.
Que posso fazer? Ignoras teu próprio valor.
Não deves reverenciar qualquer mendigo;
pertences unicamente a nós.
Não te vendas por pouco,
visto que tens tão grande valor.

Deus, o Altíssimo, disse: “Eu vos comprei, vós, vossos bens e vosso tempo. Se os dedicais e ofereceis a Mim, a recompensa será o Paraíso eterno. Esse é o valor que tendes para Mim. Por outro lado, se te vendes ao inferno, lesas a ti mesmo, como o homem que enfia na parede uma faca de grande valor e nela pendura uma cabaça ou uma botija”.

Rumi (1207-1273)