Saturno na Literatura

Erwin Panofsky — SATURNO E A MELANCOLIA
Contribuição e tradução de Antonio Carneiro

Saturno y la melancolia, estudios de historia de la filosofia de la naturaleza, la religión y el arte; Raymond Klibansby, Erwin Panosfky y Fritz Saxl; Alianza Editorial; Madrid; 1991,2004; título original “Saturn and Melancholy”; versión espaῆola de María Lauísa Balseiro; 427 p. ; ISBN 84-206-7100-2

In: Segunda parte, Sarturno, Astro de la Melancolia, Capítulo 1 Saturno en la tradición literária. PP.184-185

Entre 1120 e 1180 as traduções do árabe colocaram ao alcance do Ocidente uma vasta soma de doutrina astrológica do Oriente e do Império tardio. Mas muito antes, no século X, existiu uma cópia ─ atualmente conservada em Paris ─ do “Liber Alchandri philosophi”, que passando por Oriente devolveu ao Ocidente latino as doutrinas gregas tardias, e que foi recopiado continuamente até o século XV, e mais tarde impresso.

Assim pois, no século X, se não antes até, a ideia dos filhos de Saturno voltou para Europa pela mão do “Alchandrinus”. Os nascidos sob Saturno eram morenos, ombros largos, cabeças arredondadas e pouco barbados. Eram ladrões; eram loquazes; eram pessoas que diziam uma coisa com a boca mas abrigavam outra no coração; alimentavam o ressentimento, eram filhos do demônio, eram avarentos em sua terra e rapaces fora dela, e assim sucessivamente. É verdade que na alta Idade Média haviam poucos homens capazes de fazer as observações necessárias para estabelecer um horóscopo (“cumque tamen a paucis hoc iugiter possit observari”, disse nosso autor). Por isso a doutrina medieval de mais cedo baseava-se em averiguar o astro do nascimento a partir do valor numérico do nome da pessoa: dividia-se o nome por sete, e se o resultado desse cinco a pessoa era filha de Saturno.

A recuperação de elementos mitológicos logo teve lugar, e a prática astrológica havia se simplificado a ponto de poder utilizar esses elementos para predizer o futuro. O compromisso teológico com a astrologia, no entanto, não teve lugar até o século XII, uma vez que Espanha e o sul da Itália tornaram familiar ao Ocidente as obras dos grandes mestres Ptolomeu e Abu Ma’sar. Para homens como Abelardo de Bath, que estiveram na Espanha em pleno auge dessa atividade tradutora, “esses seres superiores e divinos os planetas/ são por sua vez “principium” e “causae” dos seres inferiores”. Esta adoção exaustiva das crenças astrológicas foi censurada por Abelardo e Guilherme de Conches. A censura de Abelardo parte da ideia do “acidental”, o “contingens” do comentário de Boécio a Aristóteles. Tomo aquele que prometer, servindo-se da astrologia, chegar ao conhecimento de acontecimentos futuros contingentes, que eram desconhecidos inclusive da própria natureza, não deveria ser tido como astrônomo mas sim por servidor do demônio. E não foi mera consequência lógica da nítida diferença de Abelardo que Hugo de S. Victor, em seu “Didascaleion”, diferenciou dois tipos de astrologia. Uma, a natural, se ocupava da constituição dos corpos terrenos que mudavam com acerto os corpos celestes: por exemplo, a saúde, a doença, o tempo bom e mau, a fertilidade e a esterilidade. A outra classe de astrologia ocupava-se de acontecimentos futuros contingentes e matérias sujeitas ao livre arbítrio, e este segundo tipo era supersticioso.

O tratamento que Guilherme de Conches deu à astrologia era semelhante na tendência, mas fundamentalmente diferente quanto ao método. Distinguia três maneiras de considerar os corpos celestes: uma mitológica (“fabulosa”), referente aos nomes dos astros e às fábulas a eles relacionadas; outra astrológica, referente aos movimentos dos corpos celestes segundo apresentavam-se à vista; e outra astronômica, que inquiria não nos movimentos aparentes, mas sim nos movimentos reais dos corpos celestes. No curso de sua exposição, ainda que sem sublinhar expressamente, Guilherme de Conches deixava claro que esses três métodos eram mutuamente excludentes, ainda que cada um deles pudesse expressar, estreitamente entendido, a mesma verdade de maneira diferente. Saturno, por exemplo, que Guilherme comentava com mais extensão que os outros planetas, caracterizava-se do ponto de vista astronômico por ser o planeta mais distanciado e de curso mais longo: “por isso se representa-o nos mitos como um ancião”.



Erwin Panofsky