Schuon Mal EPV

Frithjof Schuon — O ESOTERISMO COMO PRINCÍPIO E COMO VIA
–O que acabamos de falar sobre a humildade aplica-se igualmente à caridade e às demais virtudes, que, aliás, estão todas incluídas, de certa maneira, na humildade. O fato de o excesso de um bem ser um mal diz respeito não às virtudes em si, mas ao nosso esforço em atingi-las, pois esse esforço pode ser mal-inspirado; não pode haver excesso de virtude intrínseca, assim como não pode haver excesso de objetividade e, portanto, de verdade.
–… a imagem da queda de Lúcifer, em que o ponto mais elevado se torna o ponto mais baixo, imagem que explica a relação misteriosa e paradoxal entre o Ser poderoso, mas imutável, e o poder manifestante que se afasta do Ser até finalmente se levantar contra ele. O poder cosmogônico positivo e inocente chega a este ponto de queda que é a matéria, ao passo que o poder centrífugo, oposto, chega ao mal. São dois aspectos que não devemos confundir.
–No homem, a mão direita — sempre falando simbolicamente — realiza o bem; a mão esquerda evita ou impede o mal; o pé direito aproxima-se de Deus; o pé esquerdo afasta-se do mundo.
–…para uma perspectiva voluntarista e penitencial, que vê o mal sobretudo na paixão da carne, é grande a tentação de ver a queda no ato sexual; na verdade, é impossível a causa da queda estar numa lei positiva da natureza; ela está unicamente no fato de afastar os bens naturais de sua Fonte divina, de vivê-los fora de Deus e de atribuir a si a sua glória e o seu usufruto. O pecado de Adão e Eva foi, no fundo, menos uma ação exterior determinada do que o fato de se colocarem fora do Centro divino: de isolarem — no ato do conhecimento ou da vontade — tanto o sujeito como o objeto, portanto, de praticamente eliminá-los, embora ilusoriamente, de Deus, que, afinal de contas, é o único Sujeito e o único Objeto. Feito isso, o primeiro casal humano comete necessariamente um ato do princípio de desobediência.
–As interpretações teológicas da árvore proibida nem sempre são concludentes: assim, reconhecer que o primeiro homem tinha necessariamente discernimento moral, em seguida pretender que o pecado original foi a usurpação da faculdade — reservada a Deus — de decidir o que é o bem e o mal é, no mínimo, contraditório. Pois, se Adão tinha discernimento moral, tinira por essa mesma razão a faculdade de aplicá-lo e a frase “decidir por si mesmo ó que é o bem e o mal” não tem sentido algum, a menos que signifique o desejo de ir contra o discernimento; mas, neste caso, há a violação de uma faculdade humana e não a usurpação de um privilégio divino. Além disso, dizer que, decidindo o que é o bem e o mal, o homem se põe no lugar de Deus é insinuar que o bem e o mal resultam de uma decisão divina, isto é, de um veredicto cujas causas não podemos ignorar; aí está uma opinião que nos leva a certos exageros da teologia asharita. Evidentemente, a avaliação moral, seja extrínseca ou intrínseca, circunstancial ou essencial, nada tem de arbitrária: é mal aquilo que por sua natureza ou no plano da sua manifestação se opõe a Deus, ou aquilo que de fato é prejudicial ao homem, estando o interesse superior sempre à frente do interesse inferior. Embora seja evidente, lembremos a esse respeito que um bem objetivo pode ser subjetivamente um mal para determinado indivíduo ou para determinado gênero de homens, e inversamente; por razões de oportunidade, a moral codificada e simplificadora admitirá mais facilmente esse segundo ponto de vista do que o primeiro, no sentido de que sempre denominará um “mal” todo bem moral ou socialmente inoportuno.
–…a árvore da distinção do Bem e do Mal manifesta a Mâyâ “impura”, a que desce, dispersa e, ao mesmo tempo, condensa e entorpece; é a Possibilidade cósmica, mas em seu aspecto inferior e centrífugo. Além disso, não é sem razão que essa árvore é a morada da serpente instigadora da queda: com efeito, a serpente representa, segundo o seu simbolismo negativo, o modo luciferiano e tenebroso da tendência demiúrgica; portanto, devia encontrar-se no Paraíso primordial como virtualidade do mal, já que o Éden se situa, com efeito, no caminho da expansão cosmogônica.
–Quando Deus parece fazer o que, da parte do homem, seria um mal, Ele o compensa com um bem maior, um pouco como a cura compensa o amargor do remédio; isso resulta, necessariamente, do fato de Deus ser o Bem absoluto e, em consequência, de Ele comportar em sua natureza uma qualidade compensadora que exclui o mal como tal. O homem, não sendo o Ser necessário, é por definição contingente e, sendo contingente, não pode beneficiar-se com a natureza compensatória que resulta da Absolutez ou da Infinidade. O mal que o homem faz não é uma virtualidade do bem; é um mal puro e simples, porque o agente humano é fragmento e não-totalidade, acidente e não-substância.
–Exotericamente falando, Deus “permite” o mal tendo em vista um bem maior, o que é incontestável mas não-suficiente, pois um Deus “onipotente” poderia a priori tornar inútil essa necessidade de permitir o mal, justamente abolindo o mal. A solução esotérica é de natureza bem diferente. Isto significa que, do ponto de vista da Subjetividade divina, a Vontade que quer o mal não é a mesma que quer o bem; do ponto de vista do objeto cósmico, Deus não quer o mal como mal. Ele o quer como elemento constitutivo de um bem; portanto, como bem. Por outro lado, o mal nunca é assim por sua substância existencial, por definição desejada por Deus; ele só é pelo acidente cósmico da privação do bem, desejado por Deus como o elemento indireto de um bem maior. Se nos censuram por introduzir em Deus uma dualidade, admitimos sem hesitação — mas não como censura —, como admitimos todas as diferenciações na Divindade, quer se trate de graus hipostáticos de qualidades ou energias. A própria existência do politeísmo nos dá razão, excetuando-se o aspecto eventual de desvio e de paganização.
–Assim como a virtualidade do mal se encontrava na alma do primeiro homem, assim também a corruptibilidade material existia virtualmente no seu corpo paradisíaco e incorruptível. Esse corpo não podia se corromper em seu estado normal, mas a atuação do mal na alma tirou os quatro elementos sensíveis de sua homogeneidade etérea, que era a do corpo edênico; é o que ensina a Cabala. Tendo a alma abandonado em seu movimento deífugo a contemplação do Uno, consequentemente, os quatro elementos corporais deixaram por sua vez sua unidade primordial, a quinta essentia ou o Éter. Dissociaram-se e opuseram-se um ao outro, para acabar reunindo-se num plano inferior e compor o corpo corruptível do homem que perdeu a graça divina, conservando desde então seu corpo incorruptível como uma virtualidade pura. Portanto, o corpo edênico não desapareceu por completo, mas é como um “núcleo de imortalidade” totalmente oculto sob sua exterioridade corruptível. Nosso corpo atual é corruptível por ser composto pelos quatro elementos e porque toda coisa composta, por definição, está destinada à decomposição.
–…a tendência para o mal continua sempre uma volição, portanto, uma utilização de nossa liberdade, assim como uma felicidade ilusória continua sempre uma experiência de bem-estar, portanto, uma participação ontológica e longínqua, eventualmente perversa, da única Felicidade que possa existir. Ou ainda: querer ou amar o mal é um mal; mas conhecer o mal não é um mal, é um bem mesmo porque permite localizar o mal e vencê-lo.
–…origem do mal não é a curiosidade ou a ambição, como no caso de Eva, mas um amor desregrado; portanto, o excesso de um bem.
–A injustiça é uma provação, mas a provação não é uma injustiça. As injustiças vêm dos homens, ao passo que as provações vêm de Deus. Aquilo que, da parte dos homens, é injustiça e, consequentemente, mal, é provação e destino da parte de Deus. Temos o direito ou, eventualmente, o dever de combater esse mal, mas devemos nos resignar à provação e aceitar o destino. Isso significa que é preciso combinar as duas atitudes, considerando que toda injustiça que sofremos da parte dos homens é, ao mesmo tempo, uma provação que nos chega da parte de Deus.
–Na dimensão horizontal ou terrestre, pode-se escapar do mal combatendo-o e vencendo-o. Ao contrário, na dimensão vertical ou espiritual, pode-se escapar, senão à provação em si, pelo menos ao seu peso, e isto aceitando o mal na qualidade de vontade divina e transcendendo-o interiormente na qualidade do jogo cósmico, como se pode transcender espiritualmente qualquer outra manifestação de Mâyâ.
–…devemos evitar dois erros: acreditar que um mal é no seu próprio plano um bem ou porque Deus no-lo envia, ou porque Deus o permite, ou porque tudo vem de Deus; e acreditar que uma provação, como tal, é um mal porque a sua forma é um mal e porque nós somos vítimas.
–…o mal não é por definição aquilo que faz sofrer, mas o que frustra um máximo de almas quanto aos seus fins últimos, mesmo com um máximo de conforto ou de satisfação, ou de “justiça”, se quisermos.
–Nenhum conhecimento fenomenal é um mal em si; mas a grande questão é saber primeiro se esse conhecimento é conciliável com a finalidade da inteligência humana; segundo, se é útil e, terceiro, se o homem o admite espiritualmente.



Frithjof Schuon