Precisamos responder, aqui, à objeção de que a atitude do esoterista comporta uma espécie de duplicidade em relação à religião, que fingimos praticar, conferindo às coisas um alcance diferente. Eis uma suspeita que não leva em conta a própria perspectiva da gnose nem a da sua assimilação pela alma, em virtude das quais a inteligência e a sensibilidade combinam espontaneamente pontos de vista diferentes sem trair sua realidade particular nem suas próprias exigências. A compreensão concreta dos níveis cósmicos e espirituais exclui qualquer mentira íntima. Falar a Deus sabendo que sua Personalidade necessariamente antropomorfa é um efeito de Maya não é menos sincero do que falar a um homem sabendo que ele também, e com muito mais razão, é apenas um efeito de Maya, como o somos todos nós. Do mesmo modo, não é ter falta de sinceridade pedir um favor a um homem, sabendo que o autor do dom é, evidentemente, Deus. A Personalidade divina, já o dissemos, é antropomórfica; além do que, na realidade, é o homem que se assemelha a Deus e não o contrário; Deus faz-se necessariamente homem nos seus contatos com a natureza humana.
A lealdade religiosa não é outra coisa senão a sinceridade das nossas relações humanas com Deus, com base nos meios que Ele pôs à nossa disposição. Esses meios, sendo de ordem formal, excluem ipso facto outras formas sem que, por isso, lhes falte seja o que for, do ponto de vista da nossa relação com o Céu. Neste sentido intrínseco, a forma é realmente única e insubstituível, justamente porque assim é a nossa relação com Deus. Todavia, esta unidade da base intrínseca e a sinceridade de nosso culto no âmbito dessa base não autorizam o que poderíamos denominar “nacionalismo religioso”. Se condenamos essa atitude — inevitável para a humanidade em geral, mas o problema não está aí — é porque ela implica opiniões contrárias à verdade, mais contraditórias ainda quando o fiel se refere a uma sabedoria esotérica e dispõe de dados que lhe possibilitam a constatação dos limites do formalismo religioso, com o qual se identifica sentimental e abusivamente.
Para entender bem a relação normal entre a religião comum e a sapiência, ou entre a bhakti e o jnana, é preciso saber que, em princípio, existe no homem uma dupla subjetividade, a da “alma” e a do “espírito”. Mas, de duas uma: ou o espírito se restringe à aceitação dos dogmas revelados, de modo que a alma individual seja o único sujeito do caminho em direção a Deus, ou o espírito tem consciência da sua natureza e tende para a finalidade a que está adequado, de maneira que seja ele, e não o “eu”, o sujeito do caminho, sem abolir por isso as necessidades e os direitos da subjetividade comum, precisamente, a da alma sensível e individual. O equilíbrio das duas subjetividades, a afetiva e a intelectiva — que, aliás, coincidem necessariamente em determinado ponto —, cede lugar à serenidade, cuja essência nos é oferecida pelos escritos vedantinos. A mistura errônea de subjetividades — nos esoterismos parciais ou mal revelados — produz, pelo contrário, essa contradição que poderíamos paradoxalmente denominar de “individualismo metafísico”: isto é, uma mística agitada por manifestações frequentemente irritantes mas, enfim, heroica e aberta à Misericórdia; o Sufismo nos dá exemplo disso.
O ego como tal não pode em boa lógica reivindicar a experiência do que está além do egotismo; o homem é o homem, e o Si-mesmo é o Si-mesmo. Devemos tomar cuidado para não transferir o individualismo voluntarista e sentimental do zelo religioso para o plano da consciência transpessoal; não se pode querer a gnose com a vontade contrária à natureza dela. Não somos nós que conhecemos Deus; Deus é que se conhece em nós.
A questão que se coloca aqui é saber qual é o fundo da alma: se esse fundo é constituído pelo zelo interessado ou pela contemplação desinteressada. Em outras palavras, se a alma encontra sua felicidade e sua plenitude numa paixão dirigida para Deus, no fervor pela recompensa celeste — o que é, por certo, honroso, sem esgotar, no entanto, toda possibilidade espiritual do homem — ou se a alma encontra sua felicidade e plenitude numa profunda tomada de consciência da natureza das coisas e, portanto, em seu retorno à Substância da qual é um acidente. Por um lado, as duas coisas se excluem, por outro, se combinam; aqui, tudo é uma questão de relações e proporções.
A doutrina metafísica ou esotérica dirige-se a uma outra subjetividade que não a mensagem religiosa geral: esta fala à vontade e ao homem passional; aquela, à inteligência e ao homem contemplativo. O aspecto intelectual do exoterismo é a teologia, ao passo que o aspecto emocional do esoterismo é o sentido da beleza, na medida em que esta possui virtude interiorizante; beleza da natureza, da arte e, também, acima de tudo, beleza da alma, projeção longínqua da Beleza de Deus.