Os mitos constituem “a espinha dorsal dogmática das sociedades tradicionais”; eles são “a carta pragmática” delas, afirmará B. Malinowsky.
Para Claude Lévi-Strauss, seu caráter essencial é o de não serem produzidos por mentalidades individuais, mas o de impor-se a nós pelo peso da Tradição.
Essa redescoberta do poder significante do mito e de seu valor regenerador não se faz sem esforço; sua “seriedade” não é evidente para a maioria nem para a minoria.
No quadro geral das teorias evolucionistas que dominavam o pensamento antropológico do último século, os mitos foram percebidos como a expressão de um esforço intelectual para explicar o mundo, mas também como a manifestação de um pensamento confuso, primitivo, irracional “embrionário”, segundo Frazer, ou para Taylor, como “elas mesmas resultam o fruto de crenças de uma análise confusa da realidade”.
Quando os próprios teóricos da etnologia começaram a seguir ao campo com a finalidade de não mais somente colecionar os fatos, mas também de interrogarem precisamente quanto ao aspecto destes, os pontos de vista que acabamos de resumir pareceram depressa indefensáveis. De fato, essas pessoas com as quais se podia viver, conversar, raciocinar, viviam manifestamente sem dificuldade com a realidade que as cercava, ainda que esta diferisse em certos pontos da realidade ocidental; era evidente que nenhuma insuficiência intelectual vinha entravar a eficácia das relações desses homens com seu meio; ELES NÃO CONFUNDIAM OS SONHOS COM A REALIDADE, nem as coisas com as palavras, nada, desde este momento, podia justificar a hipótese do recurso inevitável a narrativas fantasmagóricas para sustentar as atitudes de um pensamento mal assegurado e de uma percepção confusa.
Marcel Griaule descobre entre os Dogons, na África, um sistema particularmente refletido e sistemático de modos de pensamento, fundado no Mito, na analogia, nos signos simbólicos, nos sistemas de correspondência, no esoterismo iniciático. Todo o jogo social é apenas uma colocação em prática dos Mitos; Griaule concluirá dizendo que “o etnólogo nada tem a dizer, além disso, sobre a sociedade Dogon, do que dela dizem os próprios Dogons”.
O MITO, NARRATIVA DAS ORIGENS
Os mitos, diferentemente dos contos, são reconhecidos como verdadeiros pelas sociedades tradicionais. Significando “fala” ou “narrativa” em grego, o Mito deveria ser compreendido como a palavra verdadeira; é o Mito que transmite as verdades arquetípicas aos homens, graças à sua linguagem poética acessível a todos.
A não ser que sejam transmitidos por simples solicitação, como para os contos (será necessário então que o solicitante coloque de maneira judiciosa as questões que lhe são consideradas importantes), os mitos apresentam-se como a explicação das questões fundamentais antecipada pela própria sociedade.
O mito só pode ser transmitido pelo Verbo, isto é, de boca a orelha; ele é a expressão do Verbo Criador.
A maioria dos mitos remete a um «tempo primordial», ao qual nos referimos sem cessar, como sendo a «matriz dos tempos presentes».
Os nomes dos Deuses retêm o lugar dos conceitos. O risco não é somente o estatuto do mito, mas também o da própria verdade, à qual nos propomos medir; a questão é finalmente saber se a verdade científica é toda a verdade, ou se algo dito pelo mito poderia ser de outra forma.
MITO E IDEOLOGIA
Diferentemente do conceito, o Mito não é linear; ele propõe diversos níveis de conhecimentos e diferentes direções de pesquisa coexistindo num todo orgânico.
Se o mito foi por muito tempo marginalizado e incompreendido pelos filósofos modernos, é porque, como enfatizaram primeiramente René Guénon, depois1, os três níveis complementares do conhecimento tradicional “Deus, Homo e Natura” não são três estados cronológicos.
De fato, Augusto Comte e seus sucessores acreditaram ver nos diferentes conhecimentos do homem (teológicos, metafísicos e positivos) “três estados” sucessivos pelos quais haveria passado a Humanidade, segundo um processo de progresso linear.
O que está “deformado”, segundo René Guénon, “desfigurado”, segundo Gilbert Durand, “é a hierarquia do pluralismo cósmico. No pensamento (isto é, o “eu penso!”) tradicional, há três direções de pesquisa do sentido (Deus, Natura, Homo) e uma unificação que se faz pela similitude (ou analogia) de Natura e de Homo, hierarquizados sob o ato criador de Deus.
Isto é, nessa situação, em que se tem um “eu penso” em direções múltiplas e uma “Criação” unificada pelo ato do Criador, substitui-se no pensamento moderno um “eu penso” unidimensional.
Produz-se, portanto, “uma reviravolta objetiva (inversa e negativa do transcendente) que unifica o universo e seus níveis de compreensão fazendo-os entrar unidimensionalmente no propósito único e obsessivo da pesquisa «positivista». E nisso que consiste a substituição de uma «Ideologia» em uma mitologia que compreende necessariamente os distanciamentos internos de toda atitude simbólica”.
Por ocasião do Colóquio de Córdova, D. Shayegan expressou-se assim a propósito da ideologia:
“A ideologia, exteriormente, possui o aparelho racional de um pensamento, digamos lógico, no sentido clássico do termo. Ela obedece, portanto, em seu funcionamento, à lógica binária, enquanto os motivos que a nutrem encontram a oiigem deles na lógica onírica, tanto e tão bem que se, exteriormente, a ideologia obedece ao princípio do terceiro excluído, ela é motivada interiormente por categorias mágico-sincrônicas. Se, por exemplo, a ideia principal postula que somente a raça superior deve sobreviver porque é eleita pela natureza, ou somente deve triunfar esta ou aquela classe social que é missionária da história, ou ainda, que não há verdade senão no que é dito e escrito nos livros santos, resulta, segundo a implacável lógica redutora do fenômeno ideológico que, no primeiro caso, as raças inferiores devem perecer já que são condenadas pela natureza; no segundo caso, as classes antagônicas devem desaparecer porque são renegadas pela história, e, no terceiro caso, as infiéis devem ser suprimidas da cena do mundo porque contradizem as verdades primeiras que revelam os livros santos.
Temos aí um caso típico em que um aparelho lógico e racional apoiar-se em premissas que se dizem geralmente irracionais, mas das quais se pode dizer, pelo menos à luz do que acaba de ser evocado, que elas salientam uma lógica e uma razão diferentes. Assistimos nesse caso à colocação, ao cruzamento, de dois tipos de pensamento, que, em cada qual, um deformar-se para se ajustar ao outro, e que produz sem dúvida as piores aberrações”.
Assim pode-se dizer que se a ideologia obedece ao princípio do terceiro excluído, o Mito, em compensação, obedece à “lógica” do terceiro incluído já que ele é capaz de integrar os paradoxos do ser e do Universo, como o vimos a propósito dos mitos cosmogônicos.
0 mito, assim reduzido a uma simples e única dimensão, tornou-se ideologia ou dogma graças à metodologia unidimensional das Ciências do Homem.
Ou, como o exprime H. Duméry:
“Ciência ou religião, artes ou técnicas, moral ou política, nada está ao abrigo da ideologia ilusória ou enganosa, da ideologia, isto é, de uma falsa interpretação do mito, de uma explicação que não restitui nem sua ordem, nem suas causas, nem sua importância.”
O mito é, portanto, um modelo paradoxal e complexo, radicalmente diferente da ideologia lógica, unitária e simplista. Para compreender o mito, é necessário «vivê-lo», já que se trata de uma experiência total, que toca todos os constituintes do ser (conscientes e inconscientes); enquanto que, para a ideologia, é suficiente raciocinar, pois ela é de natureza apenas intelectual.
É a “desmitologização” efetuada pelas ciências sociais que conduziu o Ocidente à crise de civilização e à série de desencantamentos em que ele vive há dois séculos: desencantamento da Igreja, do progressismo burguês e, enfim, do coletivismo.
Segundo Gilbert Durand, “em seu programa de dependência e de dominação, as “ciências sociais” tornaram-se as dóceis servas de todas as empresas de alienação, desde o instante cm que suas problemáticas «reduziram-se» aos problemas de “rendimento”, de “rentabilidade”, de “produção” ou de “consumo”, de “técnicas de gestão” ou de “publicidade”.
A mistificação antropológica reside justamente no fato de que a atitude heurística transgrediu os limites (os «deveres», teriam dito os antigos companheiros) de que dispunham imemorialmente na Tradição as divindades e os poderes da mitologia. Estes últimos eram primeiramente os símbolos, os reflexos ou as projeções das necessidades que definem e delimitam a espécie homo sapiens. E se se aplica por zombaria o esquema positivista dos “três estados ” ao discurso antropológico, vê-se a utopia dessacralizar, pela metade, o mito, racionalizando-o e retirando-lhe a opacidade originária, após ser escamoteada, por sua vez, pela ideologia e pelos métodos de análise da linguagem, e é então bem verdadeiro dizer «que o homem está perecendo a medida que brilha mais forte em nosso horizonte o ser da linguagem». Esta «substituição» dupla de uma liquidação, por toda uma aquiescência tácita ou confessa ao dogma positivista, do próprio objeto da Antropologia e partindo do próprio sujeito de todo humanismo, ia-se ilustrar em todos esses acontecimentos do meio século decorrido, do qual Auschivitz e Gulag permanecem para sempre o paradigma “. (Gilbert Durand)
A INTENÇÃO SIGNIFICANTE DO MITO
O mito, enquanto história das origens, tem essencialmente uma função de instauração; somente há mito se o acontecimento fundador não possui lugar na história, mas em um tempo situado antes da história; “in illo tempore”: é essencialmente a relação de nosso tempo com o Tempo que constitui o mito. Este diz sempre como alguma coisa nasceu.
A primeira função do mito é, portanto, instaurar os tempos históricos. Antes que as coisas ocorram, o mito instaura os princípios que animarão a transformação; a história desenvolver-se-á sempre no quadro estreito dos princípios dados pelo mito que exerce o papel de arquétipo; todas as situações históricas, inclusive a temporalidade, já são prefiguradas nas representações dos deuses, mensageiros, heróis, etc.
Não é a história que se repete, mas o mito que reaparece.
Uma outra função do mito é sua função praticidade; várias escolas antropológicas marcaram o vínculo estreito que existe entre o mito e o rito. Este vínculo deve ser compreendido em seu princípio; é na medida em que o mito constitui a ligação do tempo histórico com o tempo primordial que a narração das origens toma valor de paradigma para os tempos presentes: eis aí como as coisas foram fundadas na origem, e ainda o é da mesma forma hoje. Por sua intenção significante fundamental, o mito permite que ele seja repetido, reativado no rito.
O mito constitui, portanto, uma defesa contra o tempo e seu desgaste. Ele sacraliza a história à qual se opõe, pois pertence a uma outra dimensão, uma dimensão transcendente.
O papel do mito é despertar o homem, destruir as escamas que obstruem sua visão interior e fazê-lo ver as coisas tais como elas são.
O mito reinstalar-se na realidade, mascarada, a cada instante, pelo tempo profano, relativo e mortal.
O mito confere à ação humana uma experiência do sagrado, uma função de informação e de manutenção da consciência de um outro mundo, do mundo divino.
Se conhece o mito, o homem tornar-se contemporâneo do acontecimento primordial, das origens, e para ele, o mundo tornar-se transparente.
Desde então, o mito é uma linguagem simbólica do sagrado; é também uma estrutura universal do real.
Em resumo, todo o comportamento mítico é marcado pela imitação de um arquétipo, pela repetição de um argumento exemplar e pela ruptura do tempo profano. Esses três elementos reencontram-se no comportamento cristão. De fato a experiência religiosa do homo religiosus fundar-se na imitação do Cristo que, na celebração litúrgica, tornar-se modelo exemplar graças a repetição de sua vida, de sua morte e de sua ressurreição. Assim, o tempo litúrgico opera uma ruptura no tempo profano. Permite ao cristão reatualizar um mistério, fazendo-o entrar no tempo sagrado. (Fernand Schwarz)
Gilbert Durand ↩