Os elementos iranianos e mesmo indo-iranianos do mito central maniqueísta têm sido objeto de estudos cada vez mais aprofundados nos últimos cem anos. A importância da luz-sêmen, a teoria da “mistura cósmica”, a concepção das “três vezes” (antes do ataque, a época atual e o eschaton), a sedução dos Arcontes e muitos outros episódios têm seus antecedentes ou paralelos nas religiões iranianas. A ideologia da “separação”, ou seja, do desejo de pôr fim ao estado de “mistura”(gumescin) caracteriza as religiões iranianas desde os primeiros tempos até a rígida ortodoxia dos sassânidas. Num artigo recente, Gnoli explica a função do sacrifício de Zaratustra (yasna) como promotor final dessa “separação” soteriológica. Através da prática correta do yasna, aquele que pratica o sacrifício pode obter a condição de maga, uni tipo de “transe ativo”, que lhe concede o poder (xsathra), de caráter mágico e, consequentemente, uma habilidade mística de ver (cisti), um conhecimento das realidades sobrenaturais inacessíveis aos sentidos corpóreos. Nesse estado, o sacrificante “separa” sua essência espiritual (menok) de seu ser concreto, corpóreo (gele) e se identifica com o Amesa-Spenta. Contudo, no estado de maga, ou seja, de “pureza”, o homem é “vontade pura” (axvapecak) e pode exercer seu “domínio” (axvin), porque ele efetuou a transformação (fraskart), passando do plano da existência gere, sob o jugo do destino (baxt), àquele da existência a menok – da liberdade de ação (kunisn). De acordo com Gnoli, essa concepção constitui a base da doutrina mazdeica do livro arbítrio (azatkam), segundo a qual é possível libertarmo-nos das cadeias do Heimannene e penetrar no reino da liberdade.
Se a interpretação dada por Gnoli ao yasna está correta, podemos concluir que uma técnica “mística” (ou seja, ao mesmo tempo “extática” e “gnóstica”) de separação foi conhecida no Irã desde o começo do Zoroastrismo. Creio ser desnecessário enfatizar a diferença entre essa teologia maga e a doutrina maniqueísta e a prática da “separação”. A distinção capital está na origem, no significado e na finalidade da criação da vida cósmica e da existência humana. Para Zaratustra, a criação não foi obra dos Arcontes demoníacos, mas de Ahura Mazdah. O mundo corrompeu-se depois disso; por esse motivo, a “separação” é o primeiro dever de todo crente na doutrina.
Não é esta a ocasião de discutirmos o vasto problema da origem e história de tantas religiões, filosofias, seitas e gnoses que estão centradas na ideia de “separação” e que afirmam poder conceder aos homens os meios de alcançá-la. Basta dizer que na Índia e no Irã, a partir do século sexto a. C. aproximadamente, e no mundo greco-oriental, desde o século quinto, uma série de metafísicas, soteriologias e técnicas místicas, buscando a liberdade absoluta, a sabedoria ou a redenção, tinham implícitas, como princípio ou fim último, as ideias de “separação” (são exemplos disso a Samkhya–Yoga, o Budismo, o Zoroastrismo, o Orfismo e, na época helenística e no início do Cristianismo, o Gnosticismo, o Hermetismo, a alquimia, etc.). Principalmente no Gnosticismo, têm se desenvolvido a ideologia e as técnicas de “separação”. Quase sempre o modelo da redenção gnóstica é formulado em termos de separação entre Luz e Trevas. Com variações menores, embora por vezes significativas, todos os textos gnósticos apresentam uma teologia mitologizada, uma cosmogonia, uma antropologia e uma escatologia semelhantes ou paralelas às Maniqueístas. Pelo menos algumas das seitas gnósticas mais importantes precedem cronologicamente a atividade missionária de Manés. Tanto o Gnosticismo como o Maniqueísmo afirmavam que o mundo tinha sido criado por poderes demoníacos, pelos Arcontes ou por seu líder, o Demiurgo. Esses Arcontes criaram o homem posteriormente com a única razão de manter vivo o pneuma, a “centelha” divina que lhes caiu do céu. Com a finalidade de “despertar” o homem e liberar seu pneuma, diz-se que mensageiros descem do reino da Luz e revelam agnosis redentora. A redenção quer dizer basicamente a libertação da interioridade do homem, da sua essência divina e a sua reintegração no reino da Luz. [Eliade]