O que já dissemos do materialismo de fato e da maneira como se acomodam a ele as pessoas que se creem «religiosas» mostra-o bem; e, ao mesmo tempo, vê-se por este exemplo que, no fundo, a filosofia propriamente dita não tem toda a importância que alguns lhe querem atribuir, ou que, pelo menos, só tem enquanto pode ser considerada como «representativa» de uma certa mentalidade, mais do que agindo efetiva e diretamente sobre esta; de resto, poderia uma concepção filosófica qualquer ter o mais pequeno sucesso se não respondesse a algumas das tendências predominantes da época em que é formulada? Não queremos dizer com isto que os filósofos não têm, tal como os outros, o seu papel no desvio moderno, o que seria exagerado, só que esse papel é mais restrito do que se poderia supor à primeira vista, e bastante diferente do que pode parecer exteriormente; aliás, de um modo muito geral, o que é aparente é sempre, segundo as próprias leis que regem a manifestação, mais uma consequência do que uma causa, um ponto de chegada mais do que um ponto de partida, e em todo o caso, não é nunca aí que é preciso ir buscar aquilo que age de maneira verdadeiramente eficaz numa ordem mais profunda, quer se trate nela de uma ação que se exerce num sentido normal e legítimo, quer o contrário, como no caso que referimos presentemente.
O próprio mecanicismo e o materialismo só puderam adquirir uma influência generalizada ao passar do domínio filosófico ao científico; o que diz respeito a este último, ou aquilo que se apresenta com ou sem razão como revestido deste caráter «científico», tem seguramente, por razões diversas, muito mais ação do que as teorias filosóficas sobre a mentalidade vulgar, na qual há sempre uma crença pelo menos implícita na verdade de uma «ciência», cujo caráter hipotético lhe escapa inevitavelmente, enquanto que tudo o que se qualifica de «filosofia» deixa essa mentalidade vulgar mais ou menos indiferente; a existência de aplicações práticas e utilitárias num caso, e a sua ausência, no outro, não é totalmente alheia a isso. Este fato leva-nos mais uma vez à ideia da «vida vulgar», na qual entra efetivamente uma boa dose de «pragmatismo»; e o que dizemos é ainda, claro, totalmente independente do fato de alguns dos nossos contemporâneos quererem erigir o «pragmatismo» a sistema filosófico, o que só foi possível devido exatamente ao cariz utilitário que é inerente à mentalidade moderna e profana em geral, e também porque, no estado atual de decadência intelectual, se chegou a perder completamente de vista a própria noção de verdade, de tal modo que a de utilidade ou de comodidade acabou por substituí-la totalmente. (Guénon Reino da Quantidade)