I. Nome e conceito do ser: o termo ser pode ser tomado como um verbo ou como um substantivo. No primeiro caso, pode ser considerado como expressão da cópula que une um sujeito com um atributo ou, na sua forma intransitiva, como equivalente a haver ou a existir. Ser é um dos vocábulos de mais difícil esclarecimento, não por causa das suas diversificadas significações, mas também por causa das muitas interpretações que se têm dado a cada uma das suas significações. Às vezes, entende-se o ser como a essência; outras vezes, como a existência; outras, como o ente; outras ainda, como a substância. Apesar disso, é óbvio que cada um dos citados conceitos tem definições que ainda não coincidem sempre com as que podem ser dadas da noção de ser. Por conseguinte, é conveniente por princípio supor que esta noção é diferente de qualquer outra. E isto é, com efeito, o que têm pensado todos os filósofos para os quais o problema do ser não é apenas um problema autêntico, mas o problema capital da filosofia. A noção do ser foi expressa pelos pensadores gregos mediante a substantivação verbal to ón. Ao tentarem traduzi-la, os autores latinos clássicos aperceberam-se da dificuldade de traduzir um nome por meio de um verbo. Notou-se já a diferença, destacada por Aristóteles, entre o ser e o fato de qualquer coisa ser. Isto introduziu no vocábulo medieval a diferença entre o ser e o ente; o primeiro foi considerado, com efeito, como aquilo que faz que o segundo seja. Mas como às vezes se entendia o ser no sentido da existência, e outras no sentido da essência, o anterior uso eliminava todas as dificuldades. Em relação ao conceito do ser, já os gregos se puseram o problema de que é e a quem deve ser atribuído. Pensaram que o ser é um atributo que pertence a tudo que é no mesmo sentido. Alguns pensaram que o ser de que se falava era algum mais geral que nenhuma substância determinada, ão geral, em rigor, que não era possível dizer dele outra coisa se não “é”. É o problema de Parmênides. Foi dilucidado a fundo por Platão e a seguir, sobretudo, por Aristóteles, quando estes filósofos observaram que o fato de o ser geral não significa que seja o mais elevado de todos os gêneros. Aristóteles sobretudo notou claramente que conceber o ser como a espécie de todas as espécies conduz a contradições. Com a filosofia primeira, Aristóteles iniciou a discussão em torno do problema do ser. No entanto, não resolveu, nem sequer lhe proporcionou uma fronteira definitiva. Entre outras razões, porque o ser como ser aristotélico pode ser interpretado de duas maneiras: na primeira o ser é o ser mais comum de todos, válido para todos os entes e possuindo, por conseguinte, a extensão máxima. Na segunda, o ser é o ser superior a todos e o princípio de todos. Os filósofos depois de Aristóteles (comentadores antigos e pensadores escolásticos) debateram esta questão inumeráveis vezes: uns indicaram que o problema do ser pertence à ontologia geral; outros, que é objeto da biologia. Uma das doutrinas que com mais êxito se impôs é a que foi proposta por Avicena e depois defendida e precisada por S. Tomás: a de que a noção do ser é, quando imediato, vulgaríssima de modo que tal noção de ser é a primeira que cai sob a apreensão. Não é, portanto, possível confundir o ser — ou, neste caso, o ente — com o gênero superior: o ser é um transcendental, porque está absorvido em todos os seres e ao mesmo tempo acima de todos eles, transcendendo-os. Com o que se evitam os erros em que caem tanto os que se limitam a afirmar a existência do particular sensível na medida em que é existência única, como os que se reabsorvem qualquer particularidade na unidade lógica. Mesmo admitindo que o ser não se reduz nem ao particular nem ao universal meramente lógico, há várias interpretações possíveis. A tomista apoiava-se na concepção aristotélica segundo a qual o ser é tomado em várias acepções, mas em cada acepção toda a denominação se faz por relação a um princípio único. Esta famosa tese de que “o ser se diz de muitas maneiras” é a tese da analogia do ser; segundo ela pode dizer-se que são tantas as substâncias (as quais existem) como o que não são substâncias; tal os universais (os quais, propriamente falando, não existem). Mas outros escolásticos, sem deixarem der ser aristotélicos, defendiam a univocidade do ser. Qualquer que seja a interpretação dada, os escolásticos rejeitariam algumas das ideias modernas sobre o nosso conceito. Por exemplo, a ideia kantiana segundo a qual o ser não é um predicado real, a que nos referimos no nosso artigo sobre a prova ontológica. Ou a ideia hegeliana, segundo a qual a falta de determinação do ser o aproxima e, finalmente, o identifica com o nada. Ou — ainda mais — a ideia comum a vários filósofos contemporâneos, segundo a qual o problema tradicional do ser não é senão um pseudoproblema; “o ser” esfuma-se ao comprovar-se que se trata simplesmente de um verbo — o qual se diz que se tem abusado. II. A pergunta pelo ser: a interrogação acerca do ser surgiu na Grécia em virtude de certas experiências e em consequência de certa situação. Alguns pensadores perguntaram, antes de tudo, pelo ser das coisas. Isto explica-se por duas razões: a primeira, que criam na possibilidade de as coisas terem um ser; a segunda, que se supunham capacitados para descobrirem tal ser. Esta última razão é fundamental. Com efeito, se houve antes dos primeiros filósofos homens que perguntaram pelo ser das coisas, aconteceu que as suas perguntas iam dirigidas a alguém superior, a Deus, aos Deuses, ao destino, que supunham ser a única entidade que poderia responder. Na pergunta filosófica grega, em compensação, a direção da interrogação reverte sobre o ente interrogado.. Temos assim já várias caraterísticas da nossa pergunta: crença em que há um ser das coisas; confiança na possibilidade de o encontrar; suposição de que para o encontrar não se necessita de nenhum auxílio exterior. A estas caraterísticas adicionam-se algumas outras: o perguntar grego pelo ser pressupõe 4 que o ser se encontra escondido. A face que a realidade apresenta é, portanto, falsa: é a face da aparência. O ser pelo qual se pergunta não está presente, mas ausente, e é mister descobri-lo; o ser em questão é um ser permanente. Ora bem, a partir do momento em que se formula a pergunta pelo ser, desencadeia-se a possibilidade de várias respostas: duas delas são fundamentais. Em primeiro lugar, o filósofo pode responder a si próprio que, uma vez que o ser está encoberto, consiste na essência. Em segundo lugar, pode responder que, uma vez que o ser deve existir num grau eminente, consiste na existência. A mencionada dupla possibilidade de responde à pergunta pelo ser suscitou algumas das mais pertinazes questões da filosofia. Pode-se falar inclusivamente do fato de, a partir do momento em que se formula a interrogação pelo ser, se verificar uma espécie de luta, jamais decidida, entre a essência e a existência. Esta espécie de dialética entre a essência e a existência, todavia, tem sempre lugar dentro de um horizonte comum: é o do sentido da pergunta pelo ser. III. os contrastes do ser: a noção de ser pode ser estudada mediante o contraste com outras noções. Não considerando que as noções de essência, existência ou substância possam ser propriamente contrastadas com a de ser, visto que o ser pode dizer-se como essência, existência ou substância. Portanto, consideraremos como noções contrastantes apenas o nada, a aparência, o pensar, o devir, o valor o dever ser e o sentido. O ser noções contrastantes não significa no presente caso que sejam sempre opostas. O contraste entre o ser e o nada tem sido interpretado às vezes como um contraste entre o ser e o não ser. Em tal caso, um é simplesmente a negação do outro. s vezes, porém, o nada tem sido entendido como fundamento do ser, pelo que a oposição de negação não se torna tão patente. A primeira das ditas teorias tem um sentido predominante lógico e é equivalente ao contraste entre a afirmação e a negação; a segunda teoria é principalmente metafísica e vale-se, em outros conceitos, do da liberdade do fundamento. O contraste entre o ser e a aparência exclui em princípio qualquer identificação; cada um destes elementos é-o pela referência do outro. É possível, no entanto, conceber que não há ser escondido atrás da aparência e que esta é todo o ser, concepção que paradoxalmente coincide com a que afirma que o ser está sempre imediatamente presente por si mesmo e, portanto, é ao mesmo tempo aparente, isto é, evidente. O contraste entre o ser e o pensar é de natureza diferente dos anteriores: trata-se com frequência da correlação de dois elementos que são diferentes em tudo, mas que podem ser isomórfico.. Especialmente nas metafísicas racionalistas, o mencionado isomorfismo é sublinhado como indispensável par o conhecimento. O contraste entre o ser e o devir dá-se quando este último é concebido simultaneamente como uma cobertura, e até uma aparência do ser. s vezes o contraste desvanece-se pela declaração de que o devir é o ser. O contraste entre o ser e o valor pode ser real — quando se concebem os valores como entidades que fundamentalmente “não são” —, ou pode ser apenas conceitual — quando ser e valor são estimados — como diferentes pontos de vista sobre uma mesma realidade. O primeiro é próprio de muitas filosofias modernas do valor; o segundo, de muitas das filosofias tradicionais baseadas na noção do transcendentais. O contraste entre o ser e o dever ser equivale ao contraste entre a realidade efetiva e a realidade que devia existir segundo certas normas dadas de antemão. Como estas normas são com frequência de carácter moral, trata-se de um contraste que implica a separação entre o reino físico e o reino moral. O contraste entre o ser e o sentido põe vários problemas metafísicos de índole particularmente difícil. Tem o ser sentido ou carece dele? Aparece o sentido nalguma dimensão do ser? Pode reduzir-se, em última análise, o ser ao sentido? se afirma que o ser tem sentido, ou carece dele, ou que pode reduzir-se a ele, o contraste desaparece. Em contrapartida, subsiste quando se sustenta que o sentido surge nalguma dimensão do ser. I.. as formas do ser: o estudo das formas do ser é um tema da ontologia enquanto ontologia fenomenológica. Embora tal estudo tenha sido especialmente cultivado na época contemporânea, encontram-se muito importantes contribuições par o mesmo em todas as grandes filosofias (por exemplo, Aristóteles, Hegel). O ser em si é definido usualmente como o ser que permanece dentro de si mesmo, quer dizer, como o ser perfeitamente imanente. Tem-se dado às vezes como exemplo de tal ser a substância. No entanto, a substância é o princípio das suas próprias manifestações e, por conseguinte, não pode ser inteiramente imanente a si mesma. Exemplo do ser em si é antes o ser compacto e informe, hostil a toda a separação e a todo o movimento que carece inclusivamente de qualquer significado. Semelhante ser não pode ser antecedido nem atributo; tão pouco pode ser encerrado em qualquer categoria.. Alguns autores consideram que um puro ser em si é irracional na medida em que é completamente opaco e impenetrável. Outros, em compensação, mantêm a expressão da completa imanência equivale à posse por tal ser de uma absoluta transcendência e, por conseguinte, de uma perfeita racionalidade… O mencionado conceito do ser é um conceito–limite; não designa nenhuma realidade e sim unicamente uma tendência que pode possuir qualquer realidade. Outra forma de ser, o ser fora de si, parece ao princípio, exatamente oposta à antes descrita; em vez de permanecer sempre em si mesmo, o ser fora de si carateriza-se pela sua tendência para a alteridade… Ora esta alteridade pode ser compreendida de duas maneiras: Por um lado, é o ser–outro, por conseguinte, a transformação de uma realidade noutra diferente dela. Neste coso, pode dizer-se — transpondo para a ontologia a linguagem psicológica e moral — que ao se fora de si o ser é infiel a si mesmo. Por outro lado, porém, a alteridade do ser fora de si pode ser devida ao ponto de tal ser se constituir apenas na medida em que se amplia no âmbito da sua realidade por meio de novas formas ou, como às vezes se diz, de novas experiência.. O ser para si é descrito em muitas ocasiões como a forma estreitamente oposta à do ser em si. A razão de tal oposição é clara: enquanto o ser em si se constitui mediante a pura imanência, o ser para si requer a transcendência. Em geral, adverte-se que o “para si” não deve ser interpretado como um sobrar do ser sobre si próprio para se desentender completamente do alheio. Se assim fosse, o ser para si e o ser em si equivaleriam ao mesmo. O “para si” exprime melhor a intimidade e, por consequência, a possibilidade de manifestar-se continuamente a si mesmo e, inclusivamente, a de se transcender incessantemente a si mesmo. Alguns filósofos, como Hegel, pensaram que o ser para si é o resultado de um movimento determinado pela constituição interior do ser em si. Outros consideraram que o ser em si surge como o completamente indeterminado no ser em si, por conseguinte, não pode ser admitido como u desdobramento deste. Outros equipararam o ser para si com o sentido, ou com a existência real, diferentemente do ser em si, equivalente ao puro e simples fato ou à mera objetividade. A respeito do ser estático e do ser dinâmico, advertiremos que não é raro o primeiro ser comparado ou até identificado com o ser em si, e o segundo comparado ou identificado, às vezes com o ser fora de si e outras com o ser para si. As razões disto encontram-se na possibilidade de caraterizar o ser em si como um ser imóvel na medida em que perfeitamente imanente, e na de caraterizar o ser para si como um ser que não pode subsistir senão transcendendo-se continuamente a si mesmo. Todavia, pensa- se que tal equiparação é injustificado… Uns creem, com efeito, que o ser estático ou o ser dinâmico são formas de ser anteriores a quaisquer outras, tanto se pensa que o estático é o fundamento do devir, como se proclama o contrário. Outros assinalavam, em compensação, que apenas porque a ontologia fenomenológica nos revela as mencionadas formas do ser em si, do ser fora de si e do ser para si é possível compreender as outras formas. (DFW)