Giuseppe Tucci: mandala

Temos apenas uma vaga consciência da luz que banha o nosso ser interior: ponto luminoso que brilha numa noite sem luar. Mas como podemos atingi-la? Como podemos chegar até ela e nela mergulhar?

Nasce assim o esquema da complexa representação simbólica desse drama da desintegração e da reintegração, isto é, a mandala, na qual esse duplo processo é expresso por símbolos que, lidos corretamente pelo iniciado, suscitam a experiência psicológica liberadora.

Não se deve pensar que a representação pictórica da mandala se limita exclusivamente aos budistas. Estes apenas elaboraram com maior precisão uma intuição antiquíssima, a qual se esclareceu com o correr do tempo, aproveitando-se, também, pelo menos no que respeita ao esquema exterior, de concepções estrangeiras.

Não cabe aqui discutir as origens da construção da mandala, de seu sentido e de seu significado, uma vez que neste livro nos preocupamos não tanto com o problema das origens mas antes com as ideias de que a mandala (tal como a desenvolveram as escolas gnósticas da Índia e os países que aceitaram a experiência indiana) se tomou o centro e o símbolo. Examinemos, portanto, essas ideias, não em seu ponto de partida, mas no momento de seu completo desenvolvimento.

Antes de mais nada, a mandala delimita a superfície consagrada e a preserva da invasão das forças desagregadas simbolizadas por ciclos demoníacos. Mas ela é muito mais do que uma simples superfície consagrada que se deve manter pura para fins rituais e litúrgicos. Ela é, na verdade, um cosmo-grama, é o universo inteiro em seu esquema essencial, em seu processo de emanação e reabsorção: o universo não apenas em sua extensão espacial inerte, mas como revolução temporal; e ambos esses aspectos como processo vital que emana de um princípio essencial e que gira em torno de um eixo central, a montanha Sumeru, o axis mundi sobre o qual se apoia o céu e que mergulha os fundamentos no misterioso subsolo. Trata-se, aqui, de uma concepção pan-asiática, esclarecida e precisada pelas ideias cosmográficas expressas na zikurrat assírio-babilônica, e depois refletidas no esquema da cidade imperial dos reis iranianos e daí na imagem ideal do reino do cakravartin, o monarca universal das tradições indianas. Essas equivalências e teorias cosmográficas de origem assírio-babilônica adaptaram-se todavia a intuições primitivas segundo as quais o sacerdote ou o mago delimitam na terra uma superfície sagrada; essa área representa apenas, defendida pela linha que a fecha, uma projeção das forças arcanas que ameaçam a pureza do lugar ou a integridade psíquica de quem realiza a cerimônia, mas é também, por transposição mágica, o próprio mundo, no qual, ocupando-lhe o centro, o adepto se identifica com as forças que regulam o universo e de que recolhe a taumatúrgica potência.

Na Índia antiga, utilizava-se, para esse fim, um vaso redondo, que não foi abandonado nem mesmo quando a teoria da mandala encontrou elaboração definitiva. Cinco vasos eram de fato colocados nos cinco setores da mandala, o centro e as quatro laterais, cada um deles repleto de diversas substâncias. O vaso constitui o elemento indispensável de toda cerimônia hindu, na qual se cumpre o ávahana, a descida da essência divina que é preciso projetar ou introduzir numa estátua ou num objeto. Essa descida se efetua do plano celeste ao vaso, passando pelo sacrificante. O pequeno espaço do vaso ou da superfície delimitada tomava-se então magicamente o universo sobre o qual o adepto, identificado com as forças supremas, operava segundo as leis invioláveis do rito. Essa construção mágica do mundo, reflexo mágico do universo, encontra-se aliás na liturgia exorcista Bon po, isto é, na religião indígena do Tibet. Os mestres Bon po constroem mdos, representações simbólicas do mundo; esses mdos têm quatro pedestais sobre os quais se coloca um bastão, aplicando-se sobre este um outro bastão transversal, de modo a representar uma cruz, ligando-se, ademais, os dois bastões por uma série de fios entrelaçados. Imagens de deuses são colocadas ao redor: o exorcista identifica-se com a essência desses deuses, com a alma que dá vida a esse cosmos, no qual ele se transforma idealmente no princípio de tudo que é, para operar daí, taumaturgicamente onipotente, controlando as forças do universo. O mdos é um mundo construído magicamente pela transfiguração, e nele o feiticeiro é o mestre absoluto. A mesma concepção fundamental de adequação de um espaço ao cosmos domina, como já disse, a construção dos palácios reais: também estes, segundo o esquema assírio-babilônico, representam o mundo que gira em tomo de um eixo que é o trono do rei assimilado idealmente à montanha central do universo, ou à estrela polar, centro imóvel em tomo do qual tudo gira. E não apenas os palácios reais, também as habitações eram na origem uma superfície transformada em um centro, um centro no qual o axis mundi que o atravessava colocava os habitantes em contato com as três esferas da existência subterrânea, média e superior, ou infernal, atmosférica e celeste, através da ruptura entre os planos provocada pelo eixo do mundo magicamente transposto para a habitação: ocorre o mesmo na tenda dos pastores da Ásia Central, e seguramente dos tibetanos primitivos, na qual a abertura superior por onde passa a fumaça é assimilada ao buraco do céu, num sistema cósmico imaginado como uma tenda gigantesca.

Com base nesse mesmo esquema, o budismo construiu o complicado simbolismo arquitetônico de um monumento que pode ser ao mesmo tempo tumba, relicário, cenotáfio e que se chama stúpa; deu-se assim um grande passo à frente, visto que a pessoa do rei, divina, mas no entanto ligada à terra, foi substituída por um valor espiritual, o dharma, a lei, o verbo supremo de que a palavra de Buddha é o eco ou o reflexo e que se tomará ele mesmo o Ente absoluto, o plano nirvánico do ser puro, e depois, num segundo tempo, a fonte inexaurível de tudo que existe.

O mesmo princípio regula naturalmente a construção dos templos: todo templo é uma mandala. O ingresso no templo não é apenas o ingresso no lugar consagrado, mas a entrada no mysterium magnum. Aquele que cumpre com consciência pura o rito de circum-ambulação, segundo as regras prescritas, e visita ordenadamente os recessos do Templo, percorre o mecanismo do mundo, até que, chegado ao sanctum sanctorum, ele se transfigura, porquanto, ao atingir o centro místico do edifício sagrado, ele se identifica com a unidade primordial.

A mandala deriva dessas complexas premissas. Ela é uma projeção geométrica do mundo, o mundo reduzido ao seu esquema essencial. Identificando-se com o centro do mundo, a mandala transformava realmente o adepto e propiciava-lhe as condições primeiras para a eficácia da obra a realizar, assumindo, dessarte, um significado mais profundo. Ela permaneceu como paradigma da evolução e da involução cósmica, mas quem a utilizava procurava menos um retomo ao centro do universo do que o refluxo das experiências da psique por meio da concentração, para reencontrar a unidade da consciência, concentrada e coesa, e para descobrir o princípio ideal das coisas. A mandala agora não é mais um cosmograma, mas um psicocosmograma, o esquema da desintegração da unidade na multiplicidade, e a reintegração da multiplicidade na unidade, na consciência absoluta, integral e luminosa, que o yoga faz novamente brilhar no mais profundo de nosso ser.

A experiência sugeria também nesse caso representações análogas. O homem coloca no centro de si mesmo o princípio recôndito da própria vida, a semente divina, a própria essência misteriosa; ele tem a vaga intuição de uma luz que arde dentro de si e que se expande e propaga;toda a sua personalidade se centra nessa luz, desenvolvendo-se em tomo dela.

A primeira expressão indiana dessa intuição imaginada instintiva-mente como uma mandala que encerra no centro, como a roda o cubo, o ponto luminoso da consciência, da qual se irradiam as faculdades psíquicas, encontra-se numa passagem da Bihadâranyaka-upanishad (II, 5, 15), na qual se lê:

“Assim como todos os raios são enfeixados no cubo e na circunferência da roda, assim também todas as criaturas, todos os deuses, todos os mundos, todos os órgãos, todas as almas são ligadas a essa alma”. Muito tempo depois, repetia um texto tântrico: “Em seguida, imagina que todos os raios assumem o aspecto da Deusa: assim como do sol emanam eternamente os raios, da mesma maneira surgem as deusas do corpo da Grande Deusa” (Gandharvatantra, citado por Çáktânandatarangini, p. 137).

As divindades do Bardo apresentam-se igualmente dispostas na forma de mandalas.

[…]

A representação natural e mais comum dessa visão mandálica interior é a flor, mais precisamente a flor do lótus: as suas quatro ou oito pétalas dispostas simetricamente ao redor da corola simbolizam a emanação espacial da unidade à multiplicidade. O lótus expressa na Índia uma dupla simbologia: uma que poderíamos chamar de exotérica e outra, esotérica. A primeira denota a criação no sentido lato da palavra, geralmente da semente primordial das águas cósmicas, como no mito do Brahma que surge do umbigo de Nârâyana estando este imerso nessas águas. O lótus é a terra que se estende por sobre as mesmas águas (Taittiriya-Samhitâ, Sv., p. 1,3c) e o suporte do universo (Sayana, R. V. VI, p. 16. 13).

TEORIA E PRÁTICA DA MANDALA Giuseppe Tucci

Giuseppe Tucci