Watts Natividade

Alan Watts — Natividade

Myth and Ritual in Christianity (Mito e Ritual no Cristianismo)

Precisamente à meia-noite ocorreu o evento que, para o Cristianismo, marcou o centro do tempo, e a partir do qual os anos são numerados para trás até a Criação e para frente até o Último Dia — a entrada na vida eterna sendo neste Momento que separa o passado do futuro. A virgem deu nascimento à Criança que é verdadeiro Deus e verdadeiro homem, no qual o tempo e a eternidade são um.

Enquanto todas as coisas estavam em silêncio quieto, e a noite estava no meio de seu curso, sua poderosa palavra, O Senhor, desceu de seu trono real: aleluia! (Na: Domingo da Oitava da Natividade, antífona às Véperas. A condição preparatória para a unio mystica é invariavelmente o silêncio e a verdadeira profundeza da noite — silêncio ou “a prece da quietude” sendo o estado que vem quando é claramente visto que “eu” nada posso fazer, que também é meia-noite no sentido de uma espécie de desespero. Mas este é “desespero” no sentido especial de sendo “des-espirituado” ou “des-espiritado”, quer dizer “soprado para fora”, que é o sentido literal do termo “nirvana”. É o “sinal de alívio” que vem depois que “eu” alcancei o limite e descobri sua impotência, de modo que se “larga o espírito” (gives up the ghost). Então, “eu vivo; no entanto não mais eu, mas Cristo”. Vide palavras de abertura na Divina Comédia: Nel mezzo del cammin di nostra vita mi ritrovai per uma selva oscura, che la diritta via era smarrita”. Este extremo do homem deve sempre ser alcançado antes que a vida divina possa começar).

No meio dos séculos, nas profundezas do ano — o Solstício de Inverno, no meio da noite, e na gruta — as profundezas da terra, o Rei dos reis e Luz das luzes nasceu em circunstâncias de extrema humildade (tapeinophrosyne), no meio de animais em uma manjedoura de palha.

A Virgem hoje oferece o Superessencial, e a terra oferece a gruta para o Inalcançável… eu guardo um Mistério estranho e maravilhoso (paradoxon): a gruta é o Céu, e a Virgem é o trono do kerubim; nos confins da manjedoura é posto o infinito (NA: Hino de Coleta e Dispensa do Menaion, próprio da Liturgia Grega para 25 de dezembro. “Superessencial” é hyperousion, termo peculiar de São Dionísio para a divina natureza que é acima de toda concepção (essência) que a mente pode formar, incluindo aquelas de “ser” e “não-ser”.).

A tradição sustenta que no momento do nascimento do Senhor toda a Natureza estava quieta como se o tempo ele mesmo tivesse perdido uma batida e pausado em seu curso, e que o choque de uma quietude tão estranha e súbita foi sentida por todas as criaturas, por um momento, houve uma revelação universal da Encarnação de Deus. De acordo com a Legenda Dourada, “foi revelado para toda classe de criaturas, das pedras, que estão no fundo da escala de criação, aos anjos, que estão no topo”. Foi dado a conhecer à pedra pelo súbito desmoronamento do “Eterno Templo de Paz” em Roma, a respeito do qual o oráculo de Apolo profetizou que perduraria até o dia em que a virgem desse a luz a uma criança. Foi dado a conhecer à água, pois na mesma noite uma fonte que fluía em Roma transformou-se em fonte de óleo. Foi dada a conhecer às plantas, pois os vinhedos de Cádiz subitamente floresceram, deram uvas e produziram seu vinho. Foi dada a conhecer aos animais, ao boi e ao asno presentes na manjedoura. Foi dada a conhecer aos pássaros, pois à meia-noite o galo cantou como na aurora. Foi dada a conhecer aos anjos, pois toda a Ordem Celestial desceu à terra e brilhou ao redor da gruta com um brilho que transformou a noite em dia. Mal passou este pulso de silêncio e todos os nove coros do céu cantaram: Gloria in excelsis Deo — Glória a Deus nas alturas e paz na terra aos homens de boa vontade!

E, pelos anjos, foi dada a conhecer também aos homens através dos pastores de Belém, para quem o Mensageiro de Deus veio enquanto cuidavam de suas ovelhas, dizendo: “Não temais; pois, vos trago grandes alegrias, que devem se estender a todos. Pois entre vós nasceu neste dia na cidade de Davi o Salvador, que é Cristo o Senhor”.

É impossível contar toda a história da Natividade e os eventos que a cercaram de em uma ordem cronologicamente consistente. Há não somente diferenças nos relatos de Mateus e Lucas que são difíceis de reconciliar, mas o Calendário da Igreja também tem uma ordem confusa, devido em parte ao fato que só no século IV a festa do Natal (25 de dezembro) foi amplamente separada da festa da Epifania (6 de janeiro), comemorando a visita dos Magos. O memorial do Massacre dos Santos Inocentes, que se esperava seguir a visita dos Magos, cai em 28 de dezembro, de modo que a imaginação popular tem de associar os Festa dos Reis Magos, com o Natal e também com a Epifania. A Natividade foi finalmente fixada em 25 de dezembro por causa do simbolismo irresistivelmente apropriado de associação do Nascimento do Sol de Justiça com o protótipo pagão da Brumalia, a festa do Nascimento do Sol Invicto — Natalis Invicti Solis.

Pois é depois do solstício, quando Cristo nascido na carne com o novo sol transformou a estação de frio inverno, e concedendo aos homens mortais a cura, comandou as noites a decrescerem a sua vinda no avanço dos dias (Paulinus de Nola, Poema XIV).

Assim no símbolo completo da Natividade há reunido ao redor da Virgem com seu Filho não apenas a hoste de anjos com José, os pastores, o boi e o burro, mas também os três Reis-Magos representando as nações da terra — Gaspar, Merquior e Baltazar — e acima de tudo a Estrela da Epifania, da Manifestação de Cristo do mundo (de acordo com a Legenda Dourada a forma grega de seus nomes era Appellioss, Damaskos e Amerios, e a hebraica Galagat, Sarachin e Malagat). A tradição oferece um variado número de histórias dos Magos, representando-os com astrólogos caldeus ou persas, como sábios zoroastrianos, e como tipos régios das grandes raças do mundobranco, negro e mongol. O ponto é sempre, entretanto, que eles representam os gentios assim como a mais alta sabedoria e dignidade, enquanto os pastores representam os Judeus e o humilde camponês — constituindo juntos um símbolo da homenagem da humanidade ao Deus Encarnado. Seus presentes de ouro, incenso e mirra são geralmente compreendidos como oferendas apropriadas a Cristo: como Rei, o ouro do tributo, como Deus, o incenso da adoração, e como Vítima de Sacrifício, a mirra para embalsamar o corpo.

É interessante que a história de Mateus produz uma correspondência tipológica entre a vida de Cristo e a história de Israel. Pois a fuga para o Egito corresponde ao cativeiro das tribos de Israel, enquanto José, como José filho de Jacó, é um sonhador de sonhos proféticos. Além do mais, todo o Evangelho é dividido em cinco livros (1=3:1 a 7:29; 2=8:1 a 11:1; 3=11:2 a 19:2; 4=19:3 a 26:2; 5=26:3 até o final; a sentença final de cada livro é “E aconteceu que, acabando Jesus”) correspondendo aos cinco livros do Pentateuco, pois o Evangelho deve ser a Nova Lei superando a Antiga Lei de Moisés. Do mesmo modo o grande Sermão de Cristo é dado, não como em Lucas, na planície, mas na montanha assim como no Monte Sinai Moisés recebeu a Antiga Lei de Deus (vide Sermão da Montanha).

Lucas não registra a fuga para o Egito. A Natividade é seguida por eventos que normalmente sucedem o nascimento de uma criança judia — circuncisão, oito dias depois; purificação da mãe; apresentação da criança no Templo. As festas correspondentes em 1 de janeiro (circuncisão) e 2 de fevereiro (Purificação da Bendita Virgem Maria), onde a primeira tipifica a submissão do Deus Encarnado às “ordenanças da carne”, ou seja, à lei da natureza, assim como a doação formal do Nome de Salvação, Jesus.

Vós, O compassivo Senhor, sendo por natureza Deus, fez sem nada mudar em vós a forma do homem, e, para cumprir a Lei, se dispôs a se submeter à circuncisão na carne, a fim de que a escuridão cessasse, e que pudesses afastar o grosso véu de nossos sofrimentos. (Menaion, hino de dispensa de 1 de janeiro).