Yourcenar (MA:20-22) – amor

YOURCENAR, Marguerite. Memórias de Adriano. Tr. Maria Calderaro. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, p. 20-22

Os cínicos e os moralistas concordam em colocar a volúpia do amor entre os prazeres ditos grosseiros, como o prazer de comer e de beber, declarando-a, contudo, menos indispensável do que aqueles, visto que podem perfeitamente prescindir dela. Do moralista tudo se espera, mas espanta-ME que o cínico se tenha enganado. Admitamos que uns e outros receiem seus próprios demônios, seja porque lhes resistam, seja porque se lhes entreguem, esforçando-se por aviltar o prazer a fim de lhe tirar o poder quase terrível sob o qual sucumbem, e diminuir o estranho mistério no qual se sentem perdidos. Eu acreditaria nessa associação do amor às alegrias puramente físicas (supondo-se que tais alegrias existam) no dia em que visse um gastrônomo soluçar de prazer diante do seu prato favorito, tal como o amante sobre um ombro amado. De todos os jogos, o do amor é o único capaz de transtornar a alma e, ao mesmo tempo, o único no qual o jogador se abandona necessariamente ao delírio do corpo. Não é indispensável que aquele que bebe abdique da razão, mas o amante que conserva a sua não obedece inteiramente ao deus do amor. Tanto a abstinência quanto o excesso engajam apenas o homem só. Salvo no caso de Diógenes, cujas limitações e caráter racional e pessimista definem-se por si mesmos, toda experiência sensual nos coloca em face do Outro, acarretando-nos as exigências e as servidões da escolha. Não conheço, fora do amor, outra situação em que o homem deva decidir-se por motivos mais simples e mais inelutáveis. No amor, o objeto escolhido deve valer exatamente seu peso bruto em prazer, e é ainda no amor que o amante da verdade tem maiores probabilidades de julgar a nudez da criatura. A partir do desnudamento total, comparável ao da morte, de uma humildade que ultrapassa a da derrota e a da prece, maravilho-ME ao ver renovar-se, cada vez, a complexidade das recusas, das responsabilidades, das promessas, das pobres confissões, das frágeis mentiras, dos compromissos apaixonados entre nosso prazer e o prazer do Outro, tantos laços impossíveis de romper e tão depressa rompidos! Esse jogo cheio de mistérios, que vai do amor de um corpo ao amor de uma pessoa, pareceu-ME belo o bastante para consagrar-lhe uma parte de minha vida. As palavras enganam, especialmente as do prazer, que comportam as mais contraditórias realidades, desde as noções de aconchego, doçura e intimidade dos corpos, até as da violência, da agonia e do grito. A pequena frase obscena de Posidônio sobre o atrito de duas parcelas de carne, que te vi copiar nos teus cadernos escolares com aplicação de menino ajuizado, é incapaz de definir o fenômeno do amor, assim como a corda que o dedo faz vibrar não pode explicar o milagre dos sons. O que essa frase insulta não é tanto a volúpia, mas a própria carne, esse instrumento de músculos, sangue e epiderme, essa nuvem vermelha de que a alma é o relâmpago.

Confesso que a razão permanece confusa em presença do prodígio do amor, da estranha obsessão que faz com que essa mesma carne, que tão pouco nos preocupa quando compõe nosso corpo, limitando-nos somente a lavá-la, nutri-la e, se possível, impedi-la de sofrer, possa inspirar-nos uma tal paixão de carícias simplesmente porque é animada por uma personalidade diferente da nossa e porque representa certos traços de beleza sobre os quais, aliás, os melhores juízes não estariam de acordo. Aqui, como nas revelações dos Mistérios, tudo se passa além do alcance da lógica humana. A tradição popular não se enganou ao ver no amor uma forma de iniciação e um dos pontos onde o secreto e o sagrado se tocam. A experiência sensual equipara-se ainda aos Mistérios quando a primeira aproximação provoca nos não-iniciados o efeito de um rito mais ou menos assustador, escandalosamente desligado de todas as funções até então familiares, como comer, beber e dormir, parecendo antes motivo de gracejo, vergonha, ou terror. Da mesma maneira que a dança das mênades ou o delírio dos coribantes, nosso amor arrasta-nos para um universo diferente, onde, em situação normal, nos é vedada a entrada e onde cessamos de nos orientar, uma vez apagado o ardor e extinto o prazer. Cravado no corpo amado como um crucificado à sua cruz, penetrei em certos segredos da vida que começam a desvanecer-se da minha lembrança por efeito da mesma lei que faz com que o convalescente, depois de curado, cesse de encontrar-se nas misteriosas verdades do seu mal, que o prisioneiro posto em liberdade esqueça a tortura, e o triunfador, a embriaguez da glória.