Suzuki (MCB) – Deus é minha “existencialidade”

D. T. SUZUKI, D. T.. Mística: cristã e budista. Tr. David Jardim. Belo Horizonte: Itatiaia

David Jardim

Quando Deus fez o homem, colocou-lhe na alma sua obra prima, equilibrada, ativa, sempiterna. Foi uma obra tão grande que não poderia ser senão a alma e a alma não poderia ser senão a obra de Deus. A natureza de Deus, seu ser e a Divindade, todos dependem de sua obra na alma. Abençoado, abençoado seja Deus que faz sua obra na alma e que ama sua obra! Aquela obra é amor e amor é Deus. Deus ama a si mesmo e sua própria natureza, seu ser e a Divindade e, no amor que tem a si mesmo, ama todas as criaturas, não como criaturas, mas como Deus. O amor que Deus tem a si mesmo contém seu amor por todo o mundo.[[Blakney, págs. 224-5.]]

A afirmação de Eckhart do amor de Deus por si mesmo, que “contém seu amor por todo o mundo”, corresponde, de certo modo, à ideia budista da iluminação universal. Quando Buda alcançou a iluminação, convém lembrar, percebeu que todos os seres, tanto os sensíveis quanto os insensíveis, já se encontravam na própria iluminação.

A ideia da iluminação pode fazer com que, sob certos aspectos, os budistas pareçam mais impessoais e metafísicos que os cristãos. O budismo pode, assim, ser considerado mais científico e racional que o cristianismo, que se encontra pesadamente sobrecarregado de toda a sorte de acessórios mitológicos. Procede-se, pois, agora, entre os cristãos, um movimento visando a despir a religião de seu desnecessário apêndice histórico. Embora seja difícil prever até que ponto tal movimento será bem sucedido, o fato é que existem, em todas as religiões, certos elementos que podem ser chamados de irracionais e que, em geral, se relacionam com a necessidade de amor dos seres humanos. A doutrina budista da iluminação não é, afinal de contas, um frio sistema de metafísica, como parece a alguns. O amor também entra na experiência da iluminação como um de seus componentes, pois, de outro modo, ela não poderia abranger a totalidade da existência. A iluminação não significa fugir do mundo, e sentar-se de pernas cruzadas no alto da montanha, baixando-se os olhos, calmamente, para a massa humana condenada. Tem mais lágrimas do que se imagina.

Deves conhecê-lo [Deus] sem imagem, sem semelhança e sem meios. — “Para que eu conheça Deus assim, porém, sem coisa alguma intermediária, nada mais devo ser que ele, e ele nada mais deve ser do que eu”. — Digo: Deus deve ser o próprio eu, eu o próprio Deus, tão completamente que este ele e este eu sejam um só “é”, nesta “existencialidade”, trabalhando eternamente; mas, enquanto este ele e este eu, para o entendimento Deus e a alma, não forem um único aqui, um único agora, o eu não pode trabalhar nem se confundir com aquele ele.[[Evans, pág. 247.]]

O que é a vida? A existência de Deus é minha vida, mas, se assim é, o que é de Deus deve ser meu e o que é meu deve ser de Deus. Deus é minha “existencialidade” e nada mais nada menos que isso. O justo vive eternamente com Deus, a par com Deus, nem mais abaixo nem mais ao alto. Toda a sua obra é feita por Deus e Deus por ela.[[Blakney, pág. 180.]]

Como se vê pelas citações acima, era natural que os cristãos ortodoxos da época acusassem Eckhart de “herético” e que ele se defendesse. Talvez devido às nossas peculiaridades psicológicas, há sempre duas tendências opostas na maneira humana de pensar e de sentir: extrovertida e introvertida, externa e interna, superficial e profunda, objetiva e subjetiva, exotérica e esotérica, tradicional e mística. A oposição entre essas duas tendências ou temperamentos é, muitas vezes, demasiadamente profunda e forte para qualquer forma de conciliação. É isso que leva Eckhart a queixar-se que seus adversários se mostravam incapazes de compreender seu ponto de vista. Assim, diz ele: “Se pudesses ver com o meu coração, compreenderias minhas palavras, mas são verdadeiras, pois a própria verdade as ditou”.[[Evans, pág. 38.]] Agostinho é ainda mais rude que Eckhart: “O que é isto para mim, embora ninguém o compreenda!”[[Citado por Eckhart, Blakney, pág. 305.]]

original

When God made man, he put into the soul his equal, his active, everlasting masterpiece. It was so great a work that it could not be otherwise than the soul and the soul could not be otherwise than the work of God. God’s nature, his being, and the Godhead all depend on his work in the soul. Blessed, blessed be God that he does work in the soul and that he loves his work! That work is love and love is God. God loves himself and his own nature, being and Godhead, and in the love he has for himself he loves all creatures, not as creatures but as God. The love God bears himself contains his love for the whole world.[[Blakney, pp. 224-5.]]

Eckhart’s statement regarding God’s self-love which “contains his love for the whole world” corresponds in a way to the Buddhist idea of universal enlightenment. When Buddha [8] attained the enlightenment, it is recorded, he perceived that all beings non-sentient as well as sentient were already in the enlightenment itself. The idea of enlightenment may make Buddhists appear in some respects more impersonal and metaphysical than Christians. Buddhism thus may be considered more scientific and rational than Christianity which is heavily laden with all sorts of mythological paraphernalia. The movement is now therefore going on among Christians to denude the religion of this unnecessary historical appendix. While it is difficult to predict how far it will succeed, there are in every religion some elements which may be called irrational. They are generally connected with the human craving for love. The Buddhist doctrine of enlightenment is not after all such a cold system of metaphysics as it appears to some people. Love enters also into the enlightenment experience as one of its constituents, for otherwise it could not embrace the totality of existence. The enlightenment does not mean to run away from the world, and to sit cross-legged at the peak of the mountain, to look down calmly upon a bomb-struck mass of humanity. It has more tears than we imagine.

Thou shalt know him [God] without image, without semblance and without means.—“But for ME to know God thus, with nothing between, I must be all but he, he all but ME.”—I say, God must be very I, I very God, so consummately one that this he and this I are one “is,” in this is-ness working one work eternally; but so long as this he and this I, to wit, God and the soul, are not one single here, one single now, the I cannot work with nor be one with that he.[[Evans, p. 247.]]

What is life? God’s being is my life, but if it is so, then what is God’s must be mine and what is mine Cod’s. God’s is-ness is [10] my is-ness, and neither more nor less. The just live eternally with God, on a par with God, neither deeper nor higher. All their work is done by God and God’s by them.[[Blakney, p. 180.]]

Going over these quotations, we feel that it was natural that orthodox Christians of his day accused Eckhart as a “heretic” and that he defended himself. Perhaps it is due to our psychological peculiarities that there are always two opposing tendencies in the human way of thinking and feeling; extrovert and introvert, outer and inner, objective and subjective, exoteric and esoteric, traditional and mystical. The opposition between these two tendencies or temperaments is often too deep and strong for any form of reconciliation. This is what makes Eckhart complain about his opponents not being able to grasp his point. He would remonstrate: “Could you see with my heart you would understand my words, but, it is true, for the truth itself has said it.” [[Evans, p. 38.]] Augustine is however tougher than Eckhart: “What is it to ME though any comprehend not this!” [[Quoted by Eckhart, Blakney, p. 305.]]

SUZUKI, D. T. Mysticism: Christian and Buddhist. London: Taylor & Francis, 2018.

Daisetsu Teitaro Suzuki