Meyrink: Tarô

Excertos de O GOLEM, na trad. de Agatha M. Auersperg

— Diga-ME, rabino — aliás, perdão, estava querendo dizer senhor Hillel — continuou finalmente Zwack num tom estranhamente respeitoso — tenho algo a lhe perguntar, já faz muito tempo. É claro que o senhor não tem obrigação nenhuma de responder se não puder, ou não quiser. . .

Schemajah aproximou-se da mesa e ficou brincando com seu copo. Não estava bebendo. Talvez o ritual judeu não lhe permitisse isso.

— Pode perguntar, senhor Zwack.

— O senhor sabe alguma coisa a respeito da tradição secreta hebraica, da Cabala?

— Pouco, muito pouco.

— Soube que existe um documento que facilita a interpretação da Cabala: o “Zohar.”

— É verdade. O “Zohar”, ou Livro do Esplendor.

— Pois então! — exclamou Zwack. — Acho que é uma injustiça monstruosa que um documento que, pelo que ME parece, contém as chaves da interpretação da Bíblia e da felicidade…

Hiliel interrompeu para dizer: — Só algumas chaves.

— Não faz mal — só algumas chaves. Ótimo. Não é injusto que este documento seja acessível aos ricos, por ser tão raro e de muito valor? Parece que só existe um exemplar, e este exemplar se encontra em Londres. Não ME lembro se está escrito em caldeu, aramaico ou hebraico.. . Eu, por exemplo, em minha vida toda nunca tive ocasião de aprender um desses idiomas ou de viajar para Londres.

— Você expressa sempre todos os desejos com a mesma intensidade? — perguntou Hiliel com ironia.

— Não. . . creio que não — disse Zwack um pouco confuso.

— Nesse caso, não há motivos para se queixar — disse Hiliel secamente. — Aquele que não procura o Espírito com todos os átomos de seu corpo — como quem agora procura o ar -—- nunca terá a possibilidade de contemplar os mistérios de Deus.

— Deve haver algum livro que ofereça todas as chaves dos enigmas do além, e não somente algumas — pensei comigo mesmo enquanto meus dedos brincavam com a carta do “Louco” que ainda estava em meu bolso, mas antes que eu pudesse formular meu pensamento com palavras, Zwack disse exatamente a mesma coisa.

Hiliel sorriu, mas sua expressão era enigmática: — Todas as perguntas que um homem pode fazer recebem a resposta no mesmo instante que elas são formuladas.

Zwack olhou para mim.

— Você está entendendo o que ele quer dizer com isso?

Não respondi e até segurei o fôlego para não perder nem uma sílaba das palavras de Hiliel.

Schemajah continuou: — Toda a vida não passa de perguntas que tomaram uma forma e que levam nelas mesmas o germe da resposta — como também respostas repletas de perguntas.

Zwack bateu o punho na mesa.

— Muito certo: perguntas que são formuladas cada vez de uma forma diferente, e respostas que cada um entende de forma diferente.

— Isso mesmo — disse Hillel com condescendência. — Tratar todos os homens de uma só maneira é privilégio dos médicos. Quem pergunta recebe a resposta que está precisando. De outra forma a criatura humana não seguiria o caminho de suas aspirações. Vocês não acreditam que nossos textos hebraicos foram escritos só com consoantes por capricho? Cada um deve encontrar as vogais ocultas com seus próprios meios, para aprender o sentido, da forma que mais a ele se adapte — a palavra viva não deve ficar rigidamente apegada a um dogma morto.

O exibidor de marionetes protestou:

— Estas são palavras, rabino, só palavras! Quero ser o último dos Loucos se entendi alguma coisa!

Louco! A palavra ME deu uma espécie de choque elétrico e quase caí de minha cadeira.

Hillel evitou olhar para o meu lado. — Quem sabe, este poderia ser seu nome verdadeiro. — A voz de Hillel chegava aos meus ouvidos como de uma grande distância. — Nunca podemos ter certeza absoluta de nada. E como estamos falando em cartas de baralho, diga-ME Zwack, o senhor sabe jogar tarôs?

— É claro que sim, e desde minha infância.

— Nesse caso estou realmente admirado que o senhor and-e reclamando por não ter acesso a um livro que explique a Cabala, quando o senhor já teve em mãos todas as explicações por mais de mil vezes.

— Em mãos? Eu? — Zwack levou as mãos à cabeça.

— Isso mesmo, o senhor. O senhor nunca se lembrou que o jogo dos tarôs tem vinte e dois trunfos, ou seja, o mesmo número das letras do alfabeto hebraico? E nossas cartas da Boêmia são enfeitadas por um número excessivo de figuras que não passam de símbolos mais do que claros: o sol, a morte, o diabo, o juízo final. Meu caro amigo, a vida não poderia ter gritado mais alto, perto de seus ouvidos, para lhe dar todas as respostas. É claro que o senhor não pode saber que “Tarot” significa a mesma coisa que a palavra hebraica “Tora”, ou seja, a Lei, e ainda a palavra no idioma dos antigos egípcios “Tarout”, ou seja: aquela que está sendo interrogada, ou ainda, a palavra do antigo idioma zend, “torisk”, que significa: eu exijo uma resposta. Mas os sábios, sim, eles teriam de se certificar disso antes de lançar a hipótese que o jogo dos tarôs foi originário na época de Carlos VI. Por este motivo, como o “Louco” é a primeira figura do jogo, assim o homem é a primeira figura em seu próprio livro de imagens, seu segundo eu. .. Assim a letra hebraica aleph, cuja forma lembra um homem que com uma mão indica o céu e com a outra mostra a terra, significa por consequência: “O que é verdade no alto, é verdade embaixo; o que é verdade embaixo, é verdade no alto.” Foi por isso que ainda há pouco eu disse: Quem sabe se o senhor se chama realmente Zwack — afinal, não pode ter certeza disso. — Hillel continuava olhando para mim e eu tinha a impressão de que suas palavras poderiam ME revelar outros infinitos significados. — E sobretudo, não se meta nisso, senhor Zwack! As pessoas podem de repente se adentrar por caminhos escuros dos quais ninguém mais escapa, a menos que não leve um talismã. A tradição quis que um dia três homens descessem para o reino das Trevas. Um deles voltou louco, o segundo voltou cego e somente o rabino ben Akiba conseguiu voltar para sua própria casa sem que nada o tivesse afetado, e ainda declarando que ele tinha se encontrado. Quantas pessoas existem que, como Goethe, encontraram a si mesmas, sobre uma ponte, ou ao longo de um caminho que passe a vau por um rio, e que após se olharem nos olhos a si mesmos, tenham voltado sem ter enlouquecido? O senhor poderá dizer que, nesse caso, tratava-se simplesmente de um reflexo de suas próprias consciências e não do verdadeiro “outro eu”; não era, em suma, o que chamamos de ’Habal Garmin”, o “hálito dos ossos”, do qual se diz: “assim como entrou incorrupto no túmulo, assim ele voltará no dia do Juízo Final.” — O olhar de Hillel penetrava sempre mais fundo em meus olhos. — Nossas avós diziam: “ele mora bem no alto, acima da terra, num quarto sem portas, e com uma única janela de onde é impossível comunicar-se com os homens. Aquele que souber dominá-lo e instruí-lo ficará em paz consigo mesmo”. Para finalizar, o senhor sabe, como eu, que no jogo dos tarôs, todos os jogadores recebem cartas diferentes, mas somente aquele que sabe usar bem seus trunfos ganha o jogo. . . Vamos embora, senhor Zwack. Se ficar, vai acabar bebendo todo o vinho de Mestre Pernath, e não sobrará nem uma gota para ele.

Gustav Meyrink (1868-1932)