Arnaud Desjardins — Para além do Eu
Vigilância
Até agora mostrei a vigilancia como uma manifestação da atenção, mas quero distinguir bem esses dois termos. Devemos usar um vocabulário que nos seja comum e escolher palavras cujo sentido se aprofundará progressivamente com a experiência.
Podemos chamar de atenção ou concentração o fato de interessar-se sem distração por um objeto. Você encontrará na literatura hindu traduzida para o inglês a expressão to focus the mind que significa, na verdade, concentrar a atenção num ponto. E encontrará também o exemplo, repetidamente citado, dos raios do sol, que são paralelos mas que, passando através de uma lupa, se concentram num ponto e podem, em alguns instantes, queimar uma folha de papel.
É certo que essa concentração de todas as nossas faculdades mentais permite-nos alcançar resultados quando se trata de estudos ou pesquisa. Essa é uma atenção que serve na vida comum, mas não é essa a atenção pedida a quem busca a espiritualidade.
Nesta concentração, por mais espantoso que pareça, a dualidade é mantida. Há um objeto que você sente como um outro que não é você, e há você que se interessa particularmente por esse objeto. Você fica aí como ego para concentrar sua atenção. E essa concentração é limitante, pois se interessa apenas por um único objeto, como um fotógrafo que usa um “zoom” que isola um detalhe. Se, ao contrario, você usa uma grande angular, abarca um campo muito maior, muito mais vasto. A vigilância é uma tomada de consciência aberta, totalmente aberta, e na qual você não se projeta no objeto com um interesse concentrado, mas, simplesmente, se abre para os objetos. A atitude não é a mesma. Na concentração, subsiste um desejo de possuir, uma cobiça, qualquer que seja o tema ou o objeto no qual você concentra sua atenção. Enquanto que a vigilância é uma atitude não possessiva; não uma atitude de cobiça, mas uma atitude de amor e de abertura.
Se você está vigilante, ou seja, o contrário de distraído — assim como atento também é o contrário de distraído —, você se situa cada vez melhor em você mesmo, no que se chama de posição da Testemunha. E aquilo de que você se torna consciente, e talvez até mesmo intensamente consciente, não deixa marca em você, não cria samskara novo, não cria uma marca a mais para onerar o seu fardo interior.
Enquanto que, na concentração, uma impressão se marca em você. Porque você tem a atitude de um ego que procura interessar-se intensamente por qualquer outra coisa, um samskara é criado. Não há a liberdade, o relaxamento, a abertura próprias à vigilância. A vigilância nos toma semelhantes a um espelho que tudo vê, mas no qual nada se inscreve, e a atenção ou a concentração nos torna semelhantes a um filme fotográfico sobre o qual tudo o que passa através da objetiva se imprime para sempre.
A vigilância correta é uma tomada de consciência de tudo que pode ser percebido num dado momento. Pois bem, tudo que pode ser percebido a cada instante é tudo que acontece fora de nós e tudo que acontece em nós, ou seja, a maneira como reagimos àquilo com o que estamos em contato. Muscular, emocional e mentalmente, nós nos contraímos ou não? A vigilância é a função que permite evitar que as tensões se acumulem. Se há vigilância, há distensão. Se não há vigilância, mas sono, há tensão. A vida humana se desenvolve nas tensões, seja tensão para — se há atração ou desejo — seja tensão contra — se há medo ou negação. Essas tensões são físicas, emocionais e mentais. Se elas não forem dis-tendidas, se acumulam. A vida permite às vezes distender as tensões com uns berros, com um pontapé na porta ou quebrando a louça, às vezes praticando esporte ou um exercício violento ou, às vezes, fazendo amor: mas só uma parte das tensões é relaxada. Você acumula tensões na profundeza, que impossibilitam viver realmente relaxado. Como poderíamos atingir o estado-sem-esforço se vivemos tensos? Se há vigilância, não pode mais haver tensão. A vigilância está associada à distensão. Se há vigilância, eu não ME projeto mais nos objetos, não ME contraio mais inutilmente; nem física, nem emocional, nem mentalmente. Mas essa atitude não é comum. A atitude comum é um mecanismo de absorção pelo objeto, no qual você desaparece completamente e só estão atuando fenômenos de atração ou de repulsa, ou seja, tensões.
Certamente esse é um tema novo e você deve tentar descobrir isso de que estou falando por experiência própria. Até o momento você tem inúmeras possibilidades de constatar a distração, a dispersão, a falta de atenção, inúmeras possibilidades também de dirigir sua atenção numa certa direção. Temos uma pequena possibilidade de atenção e essa pequena possibilidade pode aumentar com o exercício. Mas, no Caminho, chega bem rapidamente um momento em que essa distinção entre a atenção e a vigilância deve ficar clara para você. Senão você seguirá pelo Caminho com a atitude comum e isso não o levará à Meta. É claro que você pode fazer uma pesquisa científica com a atenção concentrada, mas não a pesquisa do atman, a pesquisa do Si. Compreenda bem que essa atenção, que não deixa de ter seu valor, é uma função do ego. Se há atenção e concentração, inevitavelmente, é o ego que faz o esforço, que se concentra. Enquanto que a vigilância, mesmo se a iniciativa vem de alguém cujo ego ainda não desapareceu, leva diretamente ao não-ego ou à superação do ego.
E preciso que você encontre casos concretos: por exemplo, aquelas flores ali. Você pode tomar as flores como tema de concentração ou de meditação, mas, se a sua atitude interior não for correta, nunca superará a dualidade: a flor e eu, que tento concentrar toda a minha atenção na flor. Enquanto que, se você está simplesmente vigilante diante da flor, estará intensamente consciente dela, mas numa relação de não-dualidade. Diante da flor você se apaga como um “outro” e só está aí como pura consciência para perceber essa flor. Não é mais um ato de cobiça, é um ato de amor. Mas, visto que só existe uma única palavra amor em nossa língua, você confunde muito facilmente cobiça com amor. Sempre digo que, nesse sentido, o vocabulário é bem pobre.
Por outro lado, a atenção, no sentido de concentração, não lhe dá a consciência real de você mesmo, enquanto a vigilância é uma atitude que faz de você a testemunha, ao mesmo tempo do que acontece fora de você e do que acontece em seu interior. Ela lhe permite ver até que ponto esse interior e esse exterior estão, de fato, mais ligados do que se crê no começo, quanto o exterior só existe porque se manifesta em nós sob a forma de sensações, de emoções e de pensamentos, e quanto, inversamente, nossos pensamentos são projetados sobre o exterior. A vigilância deve ser tão ampla quanto possível. Em inglês dizem: all embracing: abrangendo tudo, incluindo tudo. Imagine que você tenha a visão de conjunto de uma situação, a visão de conjunto de uma cidade que você sobrevoaria. A visão que você tem dela corresponde à da vigilância, enquanto a concentração elimina, afasta. E preciso que você seja um “vigilante”. Mas não dê a essa palavra o incômodo sentido que você receava quando era aluno ou colegial. Veja, ao contrário, quão bela é essa palavra: “aquele que está em vigília de”. Vigie tudo que cai ou pode cair no campo de sua consciência. Faça vigília sobre o que está ao seu redor, e vele pelo que está dentro de você.