O espírito corre um risco quando trata de penetrar o sentido profundo de uma dessas criações mitológicas ou religiosas que são outras tantas expressões existenciais do homem no mundo. Do homem: de um caçador primitivo, de um lavrador da Ásia oriental, de um pescador da Oceania. No esforço hermenêutico que desenvolve o historiador das religiões, o fenomenólogo, por entender de dentro a situação desse homem, há sempre um risco: não só o de dispersar-se, mas também o de sentir-se fascinado pela magia de um xamã, os poderes de um iogue, a exaltação de um membro de qualquer sociedade orgiástica. Não ME refiro a que possa sentir a tentação de fazer-se iogue, xamã, guerreiro ou exaltado, mas sim a que se tem o sentimento de achar-se imerso em umas situações existenciais estranhas ao homem ocidental, que além lhe resultam perigosas. Este contato com umas formas exóticas capazes de nos obcecar, de nos tentar, supõe um perigo de ordem psíquica. Por isso comparei tal busca a uma longa viagem pelo labirinto; é uma espécie de prova iniciática. O esforço necessário para entender o canibalismo, por exemplo; com efeito, o homem não se volta canibal por instinto, mas sim como consequência de uma teologia e de uma mitologia. É algo que, junto com uma série infinita de situações do homem no mundo, tem que reviver o historiador das religiões se é que aspira as entender.
Quando o homem teve consciência de seu modo de ser no mundo, assim como das responsabilidades vinculadas a esse ser no mundo, tomou uma decisão que logo resultaria trágica. Penso na invenção da agricultura, não a dos cereais no Próximo Oriente, a não ser a dos tubérculos na zona tropical. A concepção daquelas populações é que a planta nutrícia é fruto de um assassinato primitivo. Um ser divino foi morto, esquartejado, e os fragmentos de seu corpo deram origem a umas plantas até então desconhecidas, especialmente aos tubérculos, que após constituem o principal alimento dos humanos. Entretanto, para assegurar a colheita seguinte, terá que repetir ritualmente o primeiro assassinato. Daí o sacrifício humano, o canibalismo e outros ritos às vezes cruéis. O homem aprendera não só que sua condição lhe exige matar para viver, mas também além disso assumiu a responsabilidade da vegetação, de sua perenidade, por isso mesmo assumiu o sacrifício humano e o canibalismo. Esta concepção trágica que durante milênios manteve uma parte da humanidade, segundo a qual a vida fica assegurada mediante a morte, quando não se trata unicamente de descrevê-la em um estudo antropológico, mas sim de compreendê-la além, existencialmente, supõe comprometer-se em uma experiência que por sua vez resulta trágica. O historiador e fenomenólogo das religiões não se situa ante estes mitos e estes ritos como ante objetos externos, como seriam uma inscrição que tem que decifrar, ou uma instituição que tem que analisar. Para entender de dentro esse mundo terá que o viver. É como um ator que entra em seus papéis, que os assume. Há às vezes tanta diferença entre nosso mundo ordinário e esse outro mundo arcaico que até a própria personalidade pode entrar em jogo.
—Trata-se ao mesmo tempo da própria Identidade e da afirmação das próprias razões frente às potências terríveis do irracional?
—Sua fórmula é exata. É bem sabido, por exemplo —e até os freudianos o dizem—, que o psiquiatra compromete sua própria razão por frequentar a enfermidade mental. O mesmo cabe dizer do historiador das religiões. O que estuda-lhe afeta profundamente. Os fenômenos religiosos expressam situações existenciais. Participa-se do fenômeno que trata de decifrar, como se se tratasse de um palimpsesto, da própria genealogia, da própria história. É minha história. E em tudo isso, efetivamente, vai envolta a potência do irracional… O historiador das religiões, portanto, ambiciona conhecer e por isso mesmo compreender as raízes de sua cultura, de seu mesmo ser. Ao preço de um longo esforço de anamnesis deverá terminar por recordar sua própria história, quer dizer, a história do espírito humano. Mediante a anamnesis, o historiador das religiões refaz em certo modo a Fenomenologia do espírito. Mas, Hegel ocupou-se unicamente de duas ou três culturas, enquanto que o historiador das religiões se vê obrigado a estudar e entender a história do espírito em sua totalidade, a partir do Paleolítico. Trata-se, por conseguinte, de uma história verdadeiramente universal do espírito. Acredito que o historiador das religiões vê melhor que outros investigadores a continuidade das distintas etapas do espírito humano e, finalmente, a unidade profunda e fundamental do espírito. Deste modo, revela-se a condição mesma do homem Daí que ME pareça decisiva a contribuição do historiador das religiões, que descobre a unidade da condição humana, e isso precisamente em um mundo moderno que está em transe de «planetarizar-se». (Mircea Eliade)